Primeira Marcha de Mulheres Indígenas de Porto Alegre enfatiza luta por direitos 

“O direito está no papel e só, não está na prática. Nós mulheres indígenas marchamos com nossas lideranças e os jovens indígenas, que são nosso legado, cobrando respostas dos nossos governantes”, destaca a carta lida durante a primeira Marcha das Mulheres indígenas de Porto Alegre, realizada nesta segunda-feira (23), em frente à prefeitura da Capital. Nascido do Encontro de Mulheres Indígenas para a Marcha das Mulheres em Brasília, o ato teve como objetivo dar visibilidade e voz à luta das mulheres indígenas. 

Com cartazes, as manifestantes reivindicaram direitos como terra, saúde e educação, pontuando também sobre os desastres climáticos que vêm acontecendo no estado. Com manifestação artística Guarani e exposição/feira de artesanato indígena da região Sul, o ato contou com representantes de movimentos populares, sociedade civil e lideranças políticas. A marcha saiu da Praça Montevideo até à Praça da Alfândega. 

“De certa forma a gente é totalmente interligado à mãe terra e a tudo que existe nela. As florestas, as águas, tudo, há uma complementaridade e nós somos parte disso. Se não enxergarmos deste modo, estamos caminhando para o que está acontecendo. E os povos indígenas sempre estão trazendo essa pauta de demarcação de território. A demarcação que estamos batalhando para que aconteça, é simplesmente por respeito à nossa vida como indígena. E nós, mulheres indígenas, fazemos isso a todo momento”, enfatizou a indígena Kaingang Angélica Domingos. 

Formada em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Política Social e Serviço Social e doutoranda em Educação, Angélica, mãe de três filhos, também ressalta a importância da Casa do Estudante Indígena.

“A nossa forma de educação é diferenciada, em que os nossos filhos estão nos processos de sociabilidade, eles estão sempre juntos. Eu estou hoje morando na Casa do Estudante Indígena, que é uma pauta também das mulheres indígenas. A gente, com muita luta, conquistou um espaço para que a gente pudesse conviver com os nossos filhos e ao mesmo tempo estudar, trabalhar”, afirmou.

Morando há 10 anos em Porto Alegre, a indígena Kaingang pertence à Terra Indígena Votouro, no Norte do estado. Ela frisou que a pauta das mulheres indígenas interligam todas as outras, principalmente as águas e as florestas. “A gente vivência principalmente no nosso estado, em Porto Alegre, uma emergência climática. São questões que vêm desde a colonização incidindo sobre os povos indígenas, principalmente sobre as mulheres indígenas, e que agora vem incidindo também na sociedade como um todo.”


A manifestação contou com exposição/feira de artesanato indígena da região Sul / Foto: Jorge Leão

Luta por direitos 

Angélica destaca que os indígenas têm direitos garantidos constitucionalmente e, mesmo assim, projetos de lei como o marco temporal são contra esses direitos. “Se já é difícil a demarcação de território, já é difícil pautar a questão dos territórios porque vivemos nessa sociedade capitalista, imagina com um marco temporal limitando a data para que a gente possa entrar com pedido sobre os nossos territórios. Isso é, mais uma vez, a morte para nós”, afirmou.

Durante a sua fala ela lembrou os massacres que vem acontecendo em relação às comunidades indígenas, como os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Uma das articuladoras da marcha, a cacica Kaingang, Iracema Gah Té Nascimento ressaltou a necessidade de cobrar os direitos para mostrar à sociedade que também os povos indígenas existem. “Somos originários desse país. Eu pensei em fazer pequena marcha aqui para nos próximos anos vir toda a sociedade, as mãe, as trabalhadoras, pessoal da periferia, morador de rua, jovens, pessoas de idade. E todos os nossos companheiros que quiserem acompanhar porque a luta é para buscar espaço e direito do nosso povo, de cada povo”, frisou.


Cacica Iracema Gah Té / Foto: Jorge Leão

A liderança ressaltou que a marcha também é em defesa do meio ambiente. “A crise climática, alguém provocou para acontecer isso. Se nós não desmatasse, não sujasse as águas, não ia… A natureza está cobrando o espaço dela porque nós somos desobediente a ela. Então a mãe tem que dar uma chocalhada pra nos acordar.”

Educadora há sete anos, a indígena Kaingang Vera Lúcia Kanincan está atualmente graduando em Artes Visuais na UFRGS. Mãe de dois adolescentes, ela ressaltou que as mulheres indígenas sempre fizeram valer a luta pelo seu direito.

“As mulheres indígenas, principalmente as kaingangs, estão sendo esquecidas. A gente precisa de alguém que nos represente em um espaço público, o espaço onde os políticos também colocam seus direitos. Então a gente tem que fazer valer o direito da mulher indígena também”, defendeu.

Moradora da aldeia Fàg Nhin, que em kaingang significa “o pinheiro na lomba”, no bairro Lomba do Pinheiro, um Porto Alegre, ela pontuou que, na comunidade, há um grupo de mulheres que trabalha para manter em pé as tradições e os valores culturais. 


Foto: Jorge Leão

Visibilidade e voz 

Segundo o Censo de 2022, Porto Alegre tem 2.708 indígenas, sendo 1.420 mulheres. No Rio Grande do Sul, a estimativa é que existam 36.096 indígenas, o que corresponde a 0,33% da população do estado. A capital gaúcha abriga povos originários de três etnias: Kaigang, Guarani M’bya e Charrua.

“Quando meus amigos procuravam a cidadania europeia, eu entendi que deveria buscar a minha ancestralidade indígena. Reencontrei minha ancestralidade 15 anos atrás. Minha bisavó era aldeada. Esse encontro foi a descoberta de um universo que eu não conhecia, de histórias que eu nunca ouvi. Hoje nós temos nos livros a história que o europeu contou sobre os indígenas, mas nós não temos livros escritos pelos indígenas porque a história deles é passada oralmente”, afirmou Juliana Dilizia Guterres Dutra, indigenista e membro da organização da marcha. 


Ato teve como objetivo dar visibilidade e voz à luta das mulheres indígenas / Foto: Jorge Leão

Para ela, a primeira marcha municipal de mulheres indígenas é histórico. “Tem pessoas em Porto Alegre que não sabem que são indígenas. Nós queremos que Porto Alegre nos veja, enquanto povos originários, como parte da cidade. E não só uma parte que precisa de apoio, mas uma parte que quer somar e construir junto. Porque hoje, a emergência climática que nós vivemos, a resposta está nos povos originais”.

A primeira de outras marchas

A ideia, de acordo com Juliana, é fazer um marcha estadual em 2025, com três dias de concentração, acampamento, de troca de ideias.  

“Essa marcha é o momento de encontro das mulheres indígenas, das mulheres Guarani, Kaingang, de todas as etnias. Para mostrar também a luta e nosso modo de vida. E para dar uma força maior, porque a gente se sente mais forte juntas assim”, afirmou a artesã Guarani Luciana Gomes, mãe de seis filhos, de Viamão. 


Foto: Jorge Leão

Abaixo a carta coletiva da Primeira Marcha de Mulheres Indígenas de Porto Alegre:

O Encontro de Mulheres Indígenas para a Marcha das Mulheres em Brasília já ocorre há alguns anos, mas no ano de 2024 é o marco da primeira Marcha das Mulheres Indígenas em Porto Alegre.

As lideranças indígenas já vem buscando esse espaço pelo direito, pelo bem viver,  acesso à saúde, à educação, à moradia e a demarcação dos seus  territórios ancestrais, para proteção do meio ambiente e da sua cultura. 

O direito está no papel e só, não está na prática. Nós mulheres indígenas marchamos com nossas lideranças e os jovens indígenas, que são nosso legado, cobrando respostas dos nossos governantes.

Chamando para todas as mulheres e os companheiros de luta pelo Bem Viver de todos os Povos e da nossa comunidade. 

Neste dia chamamos atenção para a terceira reunião de conciliação referente ao processo do Marco Temporal e o total absurdo que isso significa para os direitos dos povos indígenas, garantidos pela Constituição de 1988, e reafirmado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Exigimos compromisso com recursos, com a reforma e a entrega da Casa do Estudante Indígena (CEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); além da política afirmativa para o ingresso de estudantes indígenas nas Instituições de Ensino Superior e os Institutos Federais.

Cobramos o compromisso com a demarcação dos territórios indígenas de Porto Alegre e o Rio Grande do Sul; compromisso com a educação e saúde indígena nas  comunidades sem território originário demarcado. Compromisso com a criação de uma Casa de acolhimento para Mulher Indígena em vulnerabilidade em Porto Alegre. 

Compromisso com a criação de uma Secretaria dos Povos Indígenas em Porto Alegre, que se proponha a coordenar as políticas e fazer articulações com as demais secretarias, sendo isso uma medida extremamente fundamental, visto que, temos hoje o Ministério dos Povos Originários, uma Secretaria destinada aos mesmos, seria o equivalente em nosso município. Este espaço deve ter o protagonismo indigena bem como sua ampla e direta participação. 

Queremos o compromisso da criação de um Centro de Referência Indígena em Porto Alegre, que possa ter ambiente de exposições culturais e arqueológicas, sala multimídia, e local de descanso e acolhimento.

Buscamos o reconhecimento e respeito dos nossos corpos-território, pois nossos territórios fazem parte de nós mesmos; de participação ativa na vida política e social da cidade.

Somos a resposta para a crise climática que bate as nossas portas e como na enchente de maio, invadiu nossas casas e nossa cidade. Somos os guardiões da natureza e sabemos que olhando para o passado essa terra era indígena, e olhando para o futuro, com esperança de dias melhores, Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o Brasil, precisam voltar a ser indígena, se reconectarem com a Mãe Terra, abraçarem a sustentabilidade e reflorestarem nosso meio ambiente.


Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão


 
 

 

 

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