A ilusão da abundância (por Eduardo Fernandez Silva)

Um dos estados mais ricos do Brasil, a devastação atual do Rio Grande do Sul é resultado da “ilusão da abundância”, expressão que intitula um filme (realizado por Erika Gonzalez Ramirez e Matthieu Lietaert) que mostra mulheres liderando lutas por melhor qualidade de vida em vários países. Elas se opõem a “investimentos”, mostrando os danos que causarão, e enfrentam dirigentes políticos, que os defendem com o argumento de que criarão “emprego e renda” e trarão riquezas. É a ilusão da abundância (futura!), uma das muitas que dominam o pensamento atual, de ambos os lados da radical polarização vigente. Outra ilusão é sempre louvar “mais investimentos”, sem dar detalhes destes.

O filme mostra que alguns investimentos podem ser e são nefastos para grupos de pessoas. Os prejudicados podem ser centenas ou bilhões. Diz-se que Deus e o diabo estão nos detalhes, o que se aplica também a investimentos.

O romancista nigeriano Chigosie Obioma defende que as raízes da polarização atual se encontram “no medo de ideias”, temor comum em ambos os polos. Trata-se da recusa em até mesmo ouvir ideias divergentes: quem se rotula de direita não ouve quem é de esquerda, e vive versa. A prática do cancelamento é forma extrema desse medo de ideias; a violência contra os divergentes é sua extrapolação.

Além do mito de se louvar o investimento sem detalhar e avaliar suas consequências, há outro: a ideia de que a abundância para todos será alcançada com mais “desenvolvimento”, igualmente nunca detalhado. Também essa ilusão é compartilhada por ambos os lados da polarização, embora divirjam quanto a como alcançá-la.

Tentar impedir um investimento que fragiliza encostas e impermeabiliza o fundo de vales é, dizem alguns, ser contra o “desenvolvimento”, opor-se à criação de emprego e renda! Quando vem a enchente…. e muitas mais virão, amplificadas por investimentos na extração e queima de combustíveis fósseis, afetando bilhões de pessoas!

Compartilhar medos e objetivos é evidência de que superar a polarização é possível; tal superação é também necessária para encontrarmos soluções para os perigosos problemas globais. Acabar com o “medo de ideias” é um passo importante nessa direção. Como diz o citado Obioma, “devemos estar sempre abertos à possibilidade de mudar de ideia”, adotando uma ampla abertura mental, tanto moral quanto política, sem apego à ideologia ou dogma. Ou a ilusões.

Questionar cada ação, cada investimento, analisar, detalhar, perscrutar seus efeitos no longo prazo, ter abertura para ir além da simples afirmação de que gerarão “emprego e renda” é essencial, ainda que seja, também, evitado por dirigentes políticos, cegos ao longo prazo.

A situação atual do estado sulino mostra as consequências de se caminhar orientado pela ilusão da futura abundância, no mesmo rumo em que estamos, há décadas! Continuar com o business as usual, será danoso para a vida, levando-nos, a todos, ora a submergir, como no RGS, ora à completa desidratação, como recentemente na Amazônia!!!

 

Eduardo Fernandez Silva. Ex-Diretor da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados

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