Duas histórias do ‘Negrão’ na época dos celulares tipo ‘tijolões’

Alceu de Deus Collares morreu aos 97 anos e deixou um legado honrado, democrático e exemplar para a política brasileira. Sabia conversar, dialogar, aconselhar e conviver com adversários. Ria e vivia feliz desde os tempos que vendia laranjas em Bagé, sua terra natal, até os últimos dias, quando estava dependente extremo da sua mulher, Neusa Canabarro, e de uma cadeira de rodas. Não saía de casa. Estava confinado na zona Sul da Capital, com períodos de esquecimento das coisas da sua agitada vida.

Lembro de duas histórias de celulares ligadas a Collares governador. Eu estava por perto e vi as suas reações. A primeira foi no 7º andar do Centro Administrativo do Estado, onde funcionava a Secretaria de Energia, Minas e Comunicações comandada por sua amiga Dilma Rousseff, economista da Fundação de Economia e Estatística (FEE). Tanto a FEE como a Secretaria já foram extintas. Pois Collares, todo exibido, foi logo dizendo que os dois seguranças que o acompanhavam só vieram para segurar o seu celular – ele era um dos raros usuários no RS. Na época, os celulares pesavam entre 400 e 800 gramas, dependendo do modelo, e eram chamados de “tijolões”.

– Olha aí o Negrão, agora tem dois negrões de segurança para segurar este negrinho (celular era preto).

Naqueles tempos em que era governador (1991-95), estas palavras raciais pareciam absolutamente normais. Eram consideradas politicamente incorretas, assim muito à distância, mas Collares não se importava com isso. Um de seus atributos mais falados, hoje, dia da sua morte pela madrugada (24), por toda a mídia que entrevistou seus amigos, ex-políticos, companheiros de jornada, foi o seu alto astral e o seu bom humor.

Seguranças

A segunda vez que tive contato próximo de Collares foi na redação do Correio do Povo. Naquelas visitas chamadas de protocolares, o governador entrou com seus dois seguranças, um deles carregando o seu celular, que já era mais leve, mas ainda assim um “trambolhão”, e me viu. Não sei como me reconheceu – talvez pela assiduidade das minhas visitas ao Palácio para entrevistas coletivas – e foi logo lembrando da história da Secretaria, onde me viu, e foi logo dizendo “o negrão continua com seguranças negros e celular preto. Ah, ah, ah. Recorda?”, se dirigindo a mim.

Além de uma extensa carreira política – vereador, deputado federal por várias legislaturas, prefeito e governador e conselheiro da Itaipu Nacional, cargo que ganhou da ex-presidente Dilma Rousseff, sua ex-subordinada –, Collares foi carteiro e telegrafista dos Correios e Telégrafos (1941-1963), servidor público e formou-se em Direito na UFRGS em 1961. Militou depois em partidos como PTB, MDB e PDT. Sempre foi fiel às suas raízes humildes. Nasceu em 7 de setembro de 1927 em um rancho de torrão de Povo Novo, na zona rural de Bagé. Foi educado com rigor e com a orientação de que a sua luta seria mais árdua do que a dos colegas brancos da região – a maioria ricos e filhos de fazendeiros.

A única posse de prefeito a que assisti foi a de Collares em 1º de janeiro de 1986. Ele governou até 31 de dezembro de 1988. O mandato foi mais curto por questões de calendário eleitoral. Só três anos. E assim mesmo fez muitas coisas, a grande avenida Beira-Rio, que abriu a vista do Guaíba para a cidade. Na sua posse, a praça lotou. Era o primeiro prefeito negro da Capital e substituía João Dib, nomeado pela ditadura militar. Como governador, também foi o primeiro negro a assumir o Piratini. Uma festança. Lembro muito bem que as pessoas raramente falavam na sua condição racial, mas na sua capacidade de político.

Quem mais lembrava a sua condição era ele mesmo. Se autodenominava, nem sempre, é claro, de “Negrão”. Sabia a hora certa de falar as coisas. Com humor, diversão, alegria, dependendo do momento, ou seriedade e respeito às normas protocolares dos cargos que ocupou com sucesso ao longo da sua trajetória. O seu legado é imenso e inquestionável.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.


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