‘Daiane representa para nós uma reparação histórica’, afirma jovem kaingang

Por onde se olha, imensos campos de plantação de soja, com pouca mata nativa, minúsculos conglomerados de árvores. Essa é a vista que separa as cidades de Coronel Bicaco e Redentora. São pouco mais de nove horas, quando a equipe do Brasil de Fato RS chega até o território da Terra Indígena Guarita, onde um grupo de mulheres combina os últimos acertos da mobilização que antecede o júri popular do feminicídio da indígena kaingang Daiane Griá Sales, 14 anos. São menos de 24 horas para o desfecho do crime que aconteceu há mais de três anos e ganhou repercussão nacional

Daiane nasceu e cresceu no território que conta com mais de 23 mil hectares, no setor Laranjeiras. Localizada no Norte gaúcho, a reserva abriga o maior contingente de população kaingang do estado, e está situada entre os municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco. Foi ali que ela deu os primeiros passos para a realização do sonho, de ser professora na escola local. E é ali que está toda a sua família, avós, tios, todos os parentes e os demais indígenas. “Quando criança ela ia nas aulas e falava para mim: ‘quando eu crescer posso ficar professora’. Era o sonho dela, e ela não conseguiu”, conta Jandir Griá, tio de Daiane. 

Para chegar a casa da jovem kaingang, é preciso andar por uma estrada vermelha de chão batido, que parece sem fim, com bovinos atravessando o caminho. Rodeada por árvores, fica a residência de madeira, com um único cômodo, onde até o dia 1º de agosto de 2021, Daiane residia, quando a cerca de três quilômetros dali teve a sua vida interrompida. Seu corpo dilacerado foi encontrado no dia 4 de agosto em meio a plantação. Na casa, vivia a jovem, seus pais, e duas irmãs e um irmão. 


Jandir Griá é tio de Daiane / Foto: Alexandre Garcia

As irmãs de Daiane, ainda vão à residência, mas esporadicamente. Segundo um dos seus familiares a dor segue pungente. Dentro e fora da casa lembranças ainda vividas da jovem kaingang. “A gente não esquece, ela faleceu nova, 14 anos. As irmãs não conseguem morar aqui, ficam com saudade da finada Daiane. Saudade não vai terminar né? Elas gostavam de brincar.” 


Casa onde Daiane cresceu / Foto: Alexandre Garcia

Para que nunca mais aconteça 

“Nós estávamos na Unidade Básica de Saúde, onde eu trabalhava, no setor estiva. E a gente recebeu a notícia e achou que não fosse uma coisa tão violenta e tão triste, porque a notícia chegou a nós por uma mulher que estava lá, talvez bêbada. Tanto é que a gente pegou os aparelhos de verificar a pressão, para ver a situação”, relata a técnica em enfermagem e integrante do GT Guarita Pela Vida, Regina Sales. O corpo foi encontrado nas proximidades de uma lavoura situada na localidade de Linha Ferraz, no interior da cidade de Redentora.


Nas paredes da casa, o nome ficou / Foto: Alexandre Garcia

A comunidade foi avisada por um morador dos arredores onde o crime aconteceu, que ouviu os cães latindo e se dirigindo ao local. “Quando a gente chegou lá, e viu aquele corpo dilacerado.., até hoje a gente fica chocada. Dá um desespero, não tem como explicar. Só quem conhecesse aquele local para levar aquela menina lá. Não tinha como ela chegar sozinha. Então, a gente sabe e tem consciência disso, que ela foi levada pra lá pra fazer essas maldades, porque mesmo que ela gritasse, pedisse socorro, ninguém ia ouvir.” De acordo com a denúncia do Ministério Público, a família do réu havia possuído, em outros tempos, uma propriedade lindeira ao local do crime por ele frequentada. 

O que aconteceu com Daiane, não é um caso isolado na própria comunidade, a irmã mais velha é uma sobrevivente de violência de gênero, assim como outras moradoras do local. 


Regina Sales é técnica em enfermagem e integrante do GT Guarita Pela Vida / Foto: Alexandre Garcia

A violência contra Daiane fez nascer no território o GT Guarita Pela Vida, movimento das mulheres indígenas kaingang que luta pelo empoderamento das mulheres indígenas através do combate à violência. “Nós, mulheres indígenas, não aceitamos esse tipo de violência, principalmente com meninas, crianças, por isso que hoje nós estamos fortalecidas para lutar para que isso nunca mais aconteça. Esperamos que a justiça seja feita.” 


Caminho que leva a plantação onde o corpo de Daiane foi encontrado / Foto: Alexandre Garcia

Uma noite de três anos e meio  

“Sou uma menina indígena de 14 anos, a mesma idade que Daiane tinha quando foi assassinada. Convivi com o medo e a insegurança dentro do território. A justiça por Daiane é uma forma de mostrar que quem atenta contra as mulheres não sairá impune”, afirma a jovem kaingang, da Terra Indígena Guarita, Larissa Gadri Emílio Gomez.  

A jovem participou do ato simbólico realizado no final da noite desta quarta-feira (12), na praça do centro da cidade de Coronel Bicaco, onde acontecerá o júri popular, nesta quinta-feira (13), a partir das 8h da manhã. O júri popular será presidido pela juíza de direito Ezequiela Basso Bernardi Possani, titular da Vara Judicial da Comarca de Coronel Bicaco. O réu, o agricultor Dieison Corrêa Zandavalli, é um homem branco, de 36 anos. 

“Eu, como mãe, como mulher, eu espero que a justiça seja feita no júri desta quinta. Após a morte da Daiane eu vi na comunidade o medo estampado no rosto de cada menina e de cada mulher. A justiça será feita e quando ela chegar vai mostrar o crime bárbaro que foi feito contra Daiane. Quem mexer com uma mulher indígena não ficará impune”, afirma a kaingang Roseane Emílio. 

Durante o ato simbólico, velas foram acessas por Daiane e uma canção de ninar kaingang foi entoada. Um jogo de futebol feminino estava prestes a acontecer, mas foi suspenso até o fim do ato. 


Ato simbólico realizado no final da noite desta quarta-feira (12), na praça do centro da cidade de Coronel Bicaco / Foto: Alexandre Garcia

“Não é apenas justiça por Daiane, mas por todas as Daianes as quais não foram expostas a mídia, por todas as Daianes que resistiram ao longo de 525 anos de invasão, de colonização, de estupro e de morte aos povos indígenas. Daiane representa para nós uma reparação histórica por todas as meninas e mulheres que foram brutalmente vítimas de um sistema machista, cruel e assassino”, ressalta a jovem indígena kaingang da Terra Indígena Guarita Milena Jynhpó, comunicadora do GT Guarita pela Vida e representante dos jovens indígenas do Guarita 

Participaram da manifestação a representante do Levante Feminista contra o Feminicídio, a jornalista Télia Negrão, e lideranças do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

“Nós precisamos ser respeitadas, pelo nosso direito de viver. Essa é uma luta que nos une nesse momento e que deve nos unir sempre, pela dívida histórica que existe com as mulheres indígenas desse país, que vêm sendo violadas a mais de cinco séculos. Estamos aqui juntas pedindo por justiça, mas sabemos que essa é uma luta muito longa, porque enquando uma mulher estiver sendo violada, assassinada, nós não estaremos vivendo em uma sociedade justa”, afirma Télia. 

Sobre o julgamento 

Em 1º de outubro de 2021, o Ministério Público, após investigação da Polícia Civil, denunciou Dieison por estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras (meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime e feminicídio). A denúncia, assinada pelo promotor de justiça Miguel Germano Podanosche, destacou que a prática decorreu de motivo torpe, correspondente ao desprezo do denunciado para com a população originária Kaingang e seus integrantes (etnofobia), nutrido pela falsa ideia de que tal comunidade e as autoridades constituídas reagiriam com passividade ao estupro da ofendida em razão de sua condição de indígena.

“Convém esclarecer que o denunciado estava procurando sua vítima em eventos sabidamente frequentados por jovens indígenas, havendo, inclusive, oferecido carona a outras garotas da mesma etnia de Daiane, de modo que se pode afirmar que o fato de a ofendida integrar tal etnia foi fator determinante para que ela fosse objeto preferencial da escolha do denunciado.”

No júri popular que tem início nesta quinta, além do interrogatório do réu, estão previstos os depoimentos de 11 testemunhas. A acusação estará representada em plenário pelas Promotoras de Justiça Jaquiline Liz Staub e Lucia Helena de Lima Callegari, e a defesa do réu estará a cargo de três mulheres, as advogadas Pamela Londero, Ana Caroline da Rosa Massafra e Laura Villar Piccoli.

Serão assistentes de acusação os advogados Bira Teixeira e Celso Rodrigues Junior.


Foto: Alexandre Garcia


Adicionar aos favoritos o Link permanente.