Argentina: após protestos nas ruas, governo de Javier Milei abre nova frente de atrito com o Poder Judiciário e endurece discurso

Na esteira da questionada nomeação de dois membros da Corte Suprema de Justiça por decreto, no início do mês, o governo do presidente Javier Milei abriu uma nova frente de conflito com o Judiciário na Argentina. Dois dias depois da repressão a uma manifestação de aposentados em frente ao Congresso — que desta vez saíram às ruas com o apoio inédito de torcidas de futebol — o Ministério da Segurança solicitou à Justiça Federal o afastamento da juíza Karina Andrade, que libertou 124 pessoas detidas durante a marcha, na qual 45 ficaram feridas.

A juíza, que recebeu vários gestos de respaldo, entre eles da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos, afirmou que sua decisão foi adotada pela ausência de informações por parte das forças de segurança e do governo sobre as detenções, e porque, diante da falta de elementos condenatórios, foi priorizado o respeito aos direitos constitucionais, entre eles o da livre manifestação. O ministério é alvo de quatro denúncias penais pela violência exercida contra os manifestantes.

Em meio a declarações de altos funcionários do Gabinete de Milei sobre uma suposta tentativa de desestabilizar o governo e, até mesmo, de orquestrar um golpe de Estado, a juíza disse que seu argumento foi “estritamente jurídico” e que em momento algum o Judiciário foi informado sobre a suspeita de um plano criminoso premeditado.

Na denúncia apresentada pelo Ministério da Segurança, chefiado pela ex-candidata presidencial Patricia Bullrich, foram apontados como possíveis organizadores do suposto plano de desestabilização institucional os prefeitos peronistas Fernando Espinoza e Federico Otermín, dos municípios de La Matanza e Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, respectivamente. O governo denunciou também “grupos organizados de barras bravas [os hooligans argentinos]” de vários clubes de futebol por sedição, atentado à ordem constitucional e à vida democrática, e associação ilícita.

“Os bons são os de azul (polícia). Os filhos da puta que andam por aí com trapos no rosto e quebram carros, queimam carros e ameaçam as pessoas porque não querem perder seus trambiques [serão colocados] na cadeia”, declarou o presidente, em discurso numa exposição agrícola, em Buenos Aires, ao lado de Bullrich.

Guerra de narrativas

No entanto, na denúncia apresentada, o governo não incluiu provas sobre a presença de barras bravas nem da participação das pessoas detidas em atos violentos. Instalou-se uma guerra de narrativas entre a versão oficial e a defendida por grupos de aposentados, torcedores de futebol e outros setores que aderiram à marcha de quarta passada, na qual um fotógrafo foi gravemente ferido e está em estado crítico. Para os manifestantes, tratou-se de uma marcha pacífica, reprimida com uma violência descontrolada.

Em momentos em que a popularidade de Milei enfrenta, segundo recentes pesquisas, leves quedas, as tensões com o Judiciário, somadas ao recente escândalo desencadeado pela promoção da criptomoeda $LIBRA — que despencou de valor horas depois — na conta do presidente no X, aumentaram um clima de mal-estar social no país.

De acordo com dados da CBC Consultores, entre fevereiro e março, em consequência do chamado criptogate, a imagem positiva do chefe de Estado caiu de 51,4% para 46,1%. Nas próximas semanas, serão realizadas novas marchas de aposentados, um dos setores mais afetados pelo ajuste implementado pelo governo, uma greve nacional nas universidades e o debate sobre uma nova paralisação geral.

“Intolerância”

Enquanto escala o conflito entre Executivo e setores do Judiciário, no Congresso a oposição mais firme a Milei tenta criar uma comissão para investigar o criptogate e exigir explicações públicas da secretária-geral da Presidência, Karina Milei, irmã do presidente e uma das funcionárias mais envolvidas no caso.

“Fica cada vez mais clara a intolerância do presidente com a dissidência, seja legislativa ou judicial. O pedido de afastamento de uma juíza que atua contrariamente aos interesses do governo é grave”, afirma Daniel Sabsay, professor de Direito Constitucional da Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA).

Para ele, “falar em golpe de Estado é claramente excessivo”

Na visão de Andrés Gil Domínguez, professor de Direito Constitucional da UBA e da Universidade de La Pampa, “desde que o governo criou o chamado protocolo antipiquetes, existem elementos para duvidar de sua disposição a respeitar direitos previstos na Constituição, como o direito a se manifestar”.

“Se alguém cometer um delito, deve ser preso. Mas manifestações são um direito dos argentinos. Este governo desconhece esse direito e agora reprime. O objetivo é criminalizar os protestos e intimidar a população”, afirma Gil Domínguez.

A denúncia apresentada pelo Ministério da Segurança, acrescentou o constitucionalista, “busca colocar o governo no lugar da vítima e justificar a repressão”.

O que levou ao último capítulo do embate entre Executivo e Judiciário é a situação dos aposentados, uma das principais vítimas do ajuste de Milei. De acordo com análise realizada pelo Centro de Economia Política Argentina (Cepa), em 2024 os cortes nas aposentadorias representaram 22,1% do ajuste total aplicado pelo Ministério da Economia, que permitiu ao país encerrar o ano com superávit financeiro de 1,8% do PIB, o primeiro em 14 anos.

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