Os desastres ambientais e as falhas no planejamento e na gestão das cidades

A historiadora Maria da Glória Lopes Kopp nos lembra que as terras que agora desabam nos rios Taquari, Caí, Jacuí, Guaíba e na Lagoa dos Patos foram integradas ao mercado capitalista internacional há 200 anos. Essas terras  eram ocupadas, pelo menos há seis mil anos, por populações de origem linguística jê, que extraiam das matas de araucária, da fauna exuberante e da terra, os alimentos necessários de um modo que não causou o desequilíbrio que hoje presenciamos.

O projeto de integração do estado iniciou como “política de colonização” da corte portuguesa, que implementou o modelo do latifúndio escravizador, desde São Paulo ao Rio Grande do Sul. A corte priorizou a ocupação do território por colonos, expulsou os povos originários e iniciou o desmatamento das florestas de pinheiros de araucárias para a construção das primeiras vilas e criação de áreas de cultivo.

Organizou-se a indústria madeireira e o assentamento de mão de obra estrangeira com a vinda de miseráveis sobreviventes de guerras europeias e técnicos a serviço do capital internacional. As regiões dos vales de rios, encosta da serra e terras altas do planalto, foram transformadas em campo de cultivo intensivo de grãos e criação de animais. Foi construída a malha  ferroviária que ligava São Paulo ao Rio Grande que transportava toras de cedros e pinheiros, alimentos e o tabaco.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Rio Grande do Sul reorientou sua produção para a soja, que usa tecnologia mecanizada, produtos químicos, e reduzida mão de obra. Essa monocultura acabou diminuindo drasticamente a diversidade biológica, degradou os solos e estimulou a migração do campo para a cidade, inchando as periferias urbanas sem infraestrutura.

Apesar dos efeitos ambientais e sociais negativos, o que ficou no imaginário difundido pela grande mídia nacional foi a representação do Rio Grande do Sul como o “celeiro do Brasil” e como um estado desenvolvido. Os aspectos negativos desse modelo de desenvolvimento, que excluiu os povos originários, escravizou negros e índios, degradou o ambiente natural existente, e gerou a migração do campo para a cidade, foram excluídos do imaginário social.

Criou-se a ilusão de um modelo de desenvolvimento que gera apenas riqueza em bem-estar e que os desequilíbrios surgidos no seu caminho são acidentais, e podem ser minimizados através de leis e da ação dos governos. Mas, não é o que estamos vendo no início deste século XXI.

As elites governantes não apostaram na ciência, nos avisos dos especialistas e das lideranças dos movimentos sociais para desenvolver instrumentos de controle e gestão que viessem a regular o “apetite” voraz, por lucro e novos investimentos, da “máquina de crescimento”, que hoje é conduzida pelo agronegócio no campo e pelo setor imobiliário na cidade. Essa “máquina” não reconhece os limites do planeta terra e cria a ilusão do crescimento ilimitado que orienta a tomada de decisão das elites.

Segundo o Observatório das Metrópoles, o processo de metropolização tem suas origens na década de 1940, com a industrialização do estado do Rio Grande do Sul e o êxodo rural que marcou a segunda metade do século XX. A criação da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), nos anos 1970, se dá em um contexto político autoritário no qual ela é apresentada e justificada como um projeto desenvolvimentista e de modernização do país.

Foi organizado um aparato institucional, técnico e jurídico sem precedentes, que passou a vigorar nas redes de planejamento urbano, fruto de um projeto de cooperação internacional (Brasil – Alemanha). Esse aparato envolveu a Secretaria de Obras Públicas, o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, a Secretaria de Obras e Viação do Rio Grande do Sul, a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional. E, na esfera acadêmica, os Departamentos de Urbanismo e os Programas de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Geografia, Economia e Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Em Porto Alegre, foi criada, em 1975, a Secretaria do Planejamento Municipal, que ficou como responsável pelo planejamento urbano. Como entidades executivas, foram criadas a Associação Metropolitana de Municípios – AMEM (1967), o Conselho Metropolitano dos Municípios – CMM (1970) e o Grupo Executivo da Região Metropolitana – GERM (1970). Atualmente, existem a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal), e o Conselho Deliberativo da Região Metropolitana – CDM (2011).

A Constituição Federal de 1988 promoveu a descentralização administrativa de estados e municípios buscando dar-lhes maior autonomia, mas, ao contrário do que se desejaria, também resultou no enfraquecimento da política regional e metropolitana. Com a criação do Ministério das Cidades em 2003 e a aprovação do Estatuto da Metrópole em 2015 foram estabelecidas diretrizes para o planejamento e a gestão das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas.

Apesar disso, a RMPA ainda não tem o seu Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado. Em 2019, o governo do estado extingue a Fundação de Economia do Rio Grande do Sul, que produzia estudos sobre a RMPA, e a Metroplan, órgão de planejamento metropolitano, sem que um novo órgão fosse criado para exercer as funções decorrentes das diretrizes previstas no Estatuto da Metrópole.

Para os pesquisadores do Observatório das Metrópoles temos a necessidade de reconstruir a expertise técnica capaz de dar conta dos problemas metropolitanos, com transparência de ações e decisões.

Atualmente, os municípios reproduzem o modelo de cidade que se orienta pelas preferências do setor imobiliário, que influencia decisivamente na elaboração de uma legislação urbana que favorece os negócios desse setor, mas sem considerar as especificidades ambientais, e as infraestruturas e serviços necessários para garantir o bem-estar dos moradores. Os empreendimentos imobiliários são construídos e vendidos com a promessa de acessibilidade, qualidade de vida, segurança e um custo acessível, como podemos constatar no guia de empreendimentos da Urbay de Eldorado do Sul, uma cidade localizada na  Região Metropolitana de Porto Alegre.

O prefeito de Eldorado do Sul, em meio à enchente, afirmou, em 05/05/2024: “Acabou o nosso município”. Na cidade, com cerca de 40 mil habitantes, há cerca de 20 a 30 mil desabrigados. A cidade está isolada dos vizinhos e 100% do centro foi atingido. Esse modelo de urbanização foi colocado em cheque pela enchente decorrente das mudanças climáticas provocadas pela ação humana.

Porto Alegre, uma cidade pioneira no Brasil, no planejamento urbano e na criação do Orçamento Participativo, que envolveu as comunidades de bairro na definição de prioridades do investimento público, também não conseguiu se libertar da ilusão criada pela “máquina do crescimento” que esconde os crescentes desastres ambientais. O sistema de proteção contra as cheias, que deveria impedir que a cidade fosse inundada pelas águas, apresentou uma série de falhas que permitiram o avanço do lago. As comportas vazaram e a maior parte das casas de bomba parou de funcionar.

A causa, segundo Fernando Dornelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Ufrgs, é uma falta de manutenção e preocupação por parte do poder público. Segundo o portal de notícias Uol, a Prefeitura de Porto Alegre não investiu um real sequer em prevenção a enchentes em 2023, mesmo com o departamento que cuida da área, o Dmae, tendo R$ 428,9 milhões em caixa. O atual governo municipal não priorizou a manutenção dessa importante infraestrutura, mas apostou na revitalização do Centro Histórico e do 4º Distrito da cidade, que ficaram alagados após a inundação do Guaíba. Esse erro de priorização vai atrasar ainda mais a revitalização dessas regiões.

Mesmo com todo o aparato técnico, acadêmico, e da institucionalidade executiva criada nos anos 1970, e as novas diretrizes dos anos 2000, não superamos os obstáculos criados pela cultura do planejamento tecnocrático e centralizador dos governos positivistas dos anos 1950/60 e do período da ditadura militar dos anos 1970/80. Apesar das promessas, não conseguimos resolver os problemas de mobilidade, segregação social, e ambientais que continuam se acumulando. Os novos modelos de governança mais eficazes, transparentes e participativos não se impuseram sobre a prática política tradicional que ainda controla boa parte dos órgãos de planejamento e gestão das três esferas de governo.

Após 83 anos, quando a grande enchente de 1941 alagou a RMPA, ocorre outro evento climático ainda mais grave que nos desafia a problematizar a promessa das elites a partir da seguinte observação: existe um evidente descompasso entre o sonho vendido pelas incorporadoras do setor imobiliário (materializado em condomínios, prédios de apartamento, edifícios para negócios, e shoppings) e pelo agronegócio (que se apresenta como grande produtor de alimentos, mas opera como commodity), e a capacidade dos governos e dos órgãos de planejamento e gestão de garantir o bem-estar coletivo nas cidades e na região metropolitana.

A voz daqueles que perceberam e vivenciaram os graves problemas gerados pelo modelo de crescimento escolhido, como a dos ambientalistas, especialistas, e militantes sociais, não foi ouvida pela elite econômica e política. O Departamento de Esgotos Pluviais, no governo Olívio Dutra, em 1992, publicou o livro “Prevenir é o melhor remédio” onde explica a importância do sistema de proteção contra as inundações e alagamentos de Porto Alegre. Os governos do Estado e das prefeituras não fizeram o planejamento urbano considerando as características ambientais e os riscos de ocupação de vales, ilhas e encostas.

As enchentes revelaram a inadequação da localização de indústrias, cemitérios, subestações de energia, escolas, postos de saúde, hospitais e residências. A falta de transparência e participação da sociedade, como recomenda o Estatuto da Cidade de 2001, dá sobrevida a esse modelo de crescimento que agora se transformou em desastre social e ambiental. Sufocar as vozes que apontam para os erros cometidos só vai reforçar a ilusão criada pela “máquina do crescimento” econômico, mas não vai reverter o ciclo da natureza que nos impõem um novo ponto de equilíbrio, que, em muitos locais, se tornou mais inóspito para o ser humano.

* Pesquisador colaborador do Observatório das Metrópoles. Autor do livro A Cidade e a Modernização.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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