Comissão da Memória e da Verdade da UFRGS apura perseguições da ditadura militar

Não esquecer para não repetir. Ainda mais em tempos de ataques e revelações de tentativas de golpes contra a democracia brasileira. É para isso que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) instalou a Comissão da Memória e da Verdade “Enrique Serra Padrós”, que vai reconstruir a dinâmica de perseguições da ditadura militar na universidade.

A professora de Direito Constitucional Roberta Baggio, que preside a comissão, conta que a luta é histórica. “Ela é um pleito muito antigo da comunidade universitária. Ela foi articulada por um grupo de professores há mais de uma década. E o Ministério Público Federal ingressou, no âmbito de uma ação civil, e recomendou em 2022 que a UFRGS então efetivasse a existência de uma comissão da verdade.”

Confira a  reportagem em vídeo:

Instaurada por portaria assinada pela reitora Marcia Barbosa, a comissão recebeu o nome de Enrique Serra Padrós em homenagem ao professor falecido em 2021, reconhecido por sua atuação na luta por memória e justiça na UFRGS. Entre as violações já identificadas, destacam-se os expurgos de 40 docentes.

“Uma primeira leva de expurgados aconteceu em 64, logo após o golpe, e uma segunda leva de expurgados aconteceu depois do AI-5, em decorrência do decreto 477, no início de 69, em que a gente tem então mais uma leva de professores, de docentes expurgados”, explica Roberta.

Expurgos: “tema marcado pela dor”

No ato de instalação da comissão, realizado em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, familiares de professores expurgados na época deram seus depoimentos, trazendo as consequências da perseguição do regime militar. Um deles é Paulo Tomás Fiori, filho do ex-professor Ernani Maria Fiori.

“Os expurgos da UFRGS é um tema marcado pela dor. Aquela dor muito peculiar e persistente que carrega na memória quem sofreu uma grande injustiça”, disse Paulo relembrando que 40 professores foram sumariamente afastados em 1964 e 1969.

“Pessoas que tiveram, com suas famílias, de lidar com o medo, com a ruptura na carreira profissional e com o desafio de recomeçar a vida, muitas vezes longe de seu país. Foi a situação que vivi aos 20 anos de idade, junto com mais seis irmãos, os quais hoje também represento nesse ato”, completou.

Também deu seu depoimento a esposa do ex-professor Ernildo Stein, Suzana Guerra Albornoz. Ela lembrou, entre outros fatos, que a informação do expurgo chegou a eles via notícias do rádio de um táxi em Porto Alegre.

“Aquilo me foi um susto tão grande que eu passei a noite no pronto-socorro e perdi uma gravidez. E não foi a única. Houve outras situações que eu não vou contar todas, mas conto essa para vocês sentirem como as famílias eram atingidas”, relatou.

“Embora não fosse algo academicamente importante, nem formalmente registrado, nem nós associávamos tudo isso que aconteceu com os expurgos da UFRGS. A gente associava com a ditadura, mas nós já tínhamos consciência de cinco anos da ditadura, já tínhamos estado uma vez no exílio. Mas aconteciam coisas assim”, prosseguiu Suzana.

A coordenadora da comissão entende que, ao longo do trabalho, tão importante quanto o relatório final é envolver a comunidade universitária. “Sobretudo, a juventude, para fazer uma ponte entre o passado e o presente e conseguir gerar empatia por quem passou por isso.”


Professora Roberta Baggio / Rafa Dotti/Brasil de Fato

Sem anistia

Para Roberta, a anistia foi um equívoco que impediu a sociedade de olhar para os crimes cometidos pelo estado brasileiro. “A ausência de fazer essa tarefa de casa, ela bateu a nossa porta muito recentemente. E aí, bom, a gente vê a tentativa de um golpe de Estado orquestrado explicitamente, dentro das estruturas da Presidência da República, do Estado brasileiro, e que culminam com os atos do dia da infâmia, em 8 de janeiro.”

Em sua avaliação, o debate sobre o autoritarismo precisa, mais do que nunca, ser feito. “As gerações de hoje não alcançam a totalidade, ou nem sei se seria possível alcançar a totalidade, mas elas não compreendem o que significa não viver em democracia.”

Uma reflexão que tem tudo a ver com os debates de hoje, em que alguns setores da sociedade falam, novamente, em não punir atos antidemocráticos. “Chegou a hora de uma vez por todas dizer não para essa anistia e para todas as outras que, porventura, venham a existir no sentido de impedir que a gente enfrente o nosso legado autoritário.”


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