‘Isso é um Brumadinho 2’, diz aposentado após viver a terceira enchente em oito meses na Serra Gaúcha


Luiz Carlos dos Santos, de 66 anos, conta a situação vivida por moradores de Faria Lemos, no interior de Bento Gonçalves. Rastro de lama de enchentes e deslizamentos complica vida na zona rural de Bento Gonçalves
Luiz Carlos dos Santos, de 65 anos, aponta para um ponto próximo ao teto no 2º andar do sobrado em que mora no distrito de Faria Lemos, área interiorana de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. A casa está repleta de lama, com marcas acima dos 2 metros no andar de cima. Embaixo, o térreo virou um lamaçal.
É a terceira vez desde setembro de 2023 que o funcionário público aposentado lida com as consequências da cheia dos rios. A maior tragédia do Rio Grande do Sul deixou 143 mortos e 125 desaparecidos até este domingo (12). Cinco desaparecidos são procurados em Bento Gonçalves, a cidade de Luiz Carlos.
O aposentado mora à beira do Arroio Pedrinho, que recebe águas do Rio das Antas. Ao g1, Luiz Carlos relembra os momentos antes da nova tragédia: em aproximadamente quatro horas, o que era uma pequena faixa de água subiu cerca de 5 metros, segundo ele, e invadiu os fundos do terreno e os galinheiros. Á agua deixou a casa e a área dos fundos submersas.
“Aguentou mais uma vez, mas eu não desejo dizer para ninguém. Eu digo que assisti as reportagens do que foi feito lá em Brumadinho, hoje isso aqui é um Brumadinho 2, menor, mas é o cenário de Brumadinho”, diz o aposentado enquanto aponta para o amontoado de lama que cobre os fundos do terreno e a parte debaixo do sobrado.
Luiz Carlos mostra quintal de casa na zona rural de Bento Gonçalves, por onde, segundo ele, a água de um arroio do rio Pedrinho subiu vários metros em 3 horas. Do outro lado, sobrado de dois andares ficou quase inteiramente submerso
Fábio Tito/g1
A região da Serra Gaúcha segue debaixo de fortes chuvas desde o início dos temporais no Rio Grande do Sul. O Inmet alerta para “grande risco de grandes alagamentos e transbordamentos de rios, grandes deslizamentos de encostas” em todo o estado.
Luiz Carlos já planeja o terceiro recomeço em oito meses: vai levar sua casa para a parte de cima do terreno, onde a esposa tem um pequeno comércio. O sobrado que foi atingido será reformado e o custo é estimado em R$ 60 mil. O espaço abrigará as visitas do casal.
“Eu gosto daqui, de morar aqui. É um lugar bom, tranquilo, não adianta a gente sair se debatendo para lá e para cá. Depois de uma certa idade, não vale a pena”, diz o aposentado, que culpa as barragens feitas no vale da região da Serra Gaúcha pela tragédia na sua região.
“Alguém está ganhando dinheiro com a desgraça dos outros”, dispara. “Tem muito dinheiro envolvido? Tem, mas não para mim. Eu quero salvar minha família e eu. Eu comprei isso aqui, paguei metro por metro, eu não herdei. Aqui não foi herança. Eu trabalhei uma vida toda para construir aqui e, quando deu problema aqui e agora, quem é que vem lavar para mim?”, lamenta.
Sobrado onde morava Luiz Carlos ficou tomado pela lama após a água do rio Pedrinho baixar, em zona rural de Bento Gonçalves
Fábio Tito/g1
O governo gaúcho, de Eduardo Leite (PSDB) estima que serão necessários R$ 19 bilhões para reconstruir as cidades no longo e médio prazo, enquanto o governo federal, de Lula (PT), anunciou um pacote de R$ 50 bilhões de socorro ao estado.
Cheia dos rios e vilarejos sem água e energia
As águas do Rio Taquari subiram e causaram destruição nas cidade de Muçum, Roca Sales, Arroio do meio e Lajeados, por exemplo, antes da chegada à capital Porto Alegre. Em Santa Tereza, os terrenos beira-rio seguem com marcas de destruição e de lama.
No centro do município, as marcas da altura da água nas paredes são cicatrizes das enchentes passadas. As marcações atuais, altas, de 1,5 metro, se aproximam do 1,9 metro registrado em dezembro de 2023.
Atingidas indiretamente pelas cheias dos rios e pelos desmoronamentos de morros, algumas vilas de Bento Gonçalves estão há cerca de 10 dias sem água e sem energia elétrica. É assim na comunidade KM 2, onde fica uma antiga estação de trem, próximo à estrada que liga Bento a Veranópolis.
Sadir Francisco, morador do vilarejo KM 2, zona rural de Bento Gonçalves (RS), mostra de onde vem a água que ele tem usado para tomar banho
Fábio Tito/g1
Sadir Francisco, de 59 anos, acende velas durante as noites e conta com doações de garrafas d’água da prefeitura para se hidratar. O banho é feito com a água que vem de uma pequena fonte, fervida antes do uso.
“A situação para nós está feia. As vizinhas estão trazendo comida para a gente. Eu nasci e me criei aqui, sou um dos moradores mais velhos. Estou cansado de ficar no escuro”, disse ao g1.
Quem ajuda na alimentação da vila é a cozinheira Jurema Alves da Silva, de 47 anos. Ela alugou uma casa na área central de Bento para ter acesso a água e luz. Estima gasto de R$ 1 mil.
“Eu gostaria que vocês fizessem um apelo assim ó: água e luz aqui. Nós precisamos com urgência, porque estrada provisória a prefeitura se vira, já arrumaram”, afirmou.
Sadir, Simeão e Jurema, moradores do vilarejo Km 2, em Bento Gonçalves (RS)
Fábio Tito/g1
Pela Comunidade KM 2, a prefeitura faz obras para criar estradas provisórias que liguem a BR 470 aos vilarejos do entorno, como Matos, e a Capela Nossa Senhora Imaculada, que fica à beira do Rio das Antas (afluente do Rio Taquari) e que foi inundada pelas enchentes.
Simeão Francisco de Paula, 65 anos, trabalha nas parreiras para a produção de vinho na região interiorana do município. Ele cria porcos para ter renda extra e ajudar os vizinhos.
Simeão Francisco de Paula mostra os porcos que cria para ter renda extra no vilarejo de KM 2, em Bento Gonçalves (RS)
Fábio Tito/g1
“Agora abriu o trânsito para ter os recursos”, diz. Segundo Simeão, os resgates tiraram moradores e também 60 cachorros de um canil que fica na vila, que está em área de risco pra desmoronamentos.
Simeão não teme ser atingido pelas águas. “O rio até estourou a barragem, mas agora está no normal de anos atrás. E, aqui para cima, onde eu moro, já não é tão perigoso. Por isso eu estou aqui desde o início. Não saio daqui”.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.