Especial Artistas Gaúchas: Ana Matielo

As mulheres têm conquistado um espaço de autonomia dentro de territórios onde antes eram silenciadas. Suas produções artísticas são cada vez mais relevantes. Nesta série, apresentamos artistas gaúchas que, ao mesmo tempo que têm perpetuado as tradições do Rio Grande do Sul, têm feito uma revolução na história.

Ana Clara Matielo Lemos tem 28 anos. Uma pessoa branca, bigênera e descendente Guarani do Sul do Brasil. Violonista, compositora e etnomusicóloga formada em Música Popular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atualmente escreve sua dissertação de mestrado em Etnomusicologia sobre a articulação política de coletivos de mulheres musicistas no Rio Grande do Sul.

Seu primeiro EP, “Clara”, carrega o nome de sua avó e foi lançado em 2021, produzido juntamente com Ilu Akin Produções.

Ana participa do grupo musical Líricas Sulinas e da dupla musical Ana Clara e Clarissa, e atua como violonista em projetos diversos, como no da cantora Loma Pereira, do coletivo de mulheres no samba Sambaiaiá e do trabalho autoral de Clarissa Ferreira. Realiza workshops e palestras sobre gênero, música, diversidade e composição, com destaque para o projeto Vozes Femininas realizado em parceria com o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) de Viamão e a professora linguista Daisy Cesar.

Em 2024, com Carol Mendes, realizou a performance “Mande Kuna: corpos de água”, que aborda a experiência de “corpas originárias” em contexto urbano em arte sonora e movimento, e integra a produção cultural do Centro de Referência Indígena do RS.

Música presente desde a infância

Ana conta que ainda relembra o início da sua relação com a música, nas conversas familiares. “A música foi muito presente no meu contexto caseiro na infância, ganhei meu primeiro violão com 4 anos, e cantava desde que comecei a falar. Estudei no Projeto Prelúdio por uns dois anos. Eu acompanhava meus pais em ensaios de coros que eles integravam, e o meu pai fazia shows cover de Elvis Presley e compunha música  no estilo nativista como um hobby.”

Assim, ela acabou conhecendo muito do repertório nativista através de vários livros de cifras, montados pelo pai, que ficavam na estante da sala. Diferentemente de alguns colegas, a escolha de trabalhar com música não foi tido como um caminho desviante pelo seu núcleo familiar. Pelo contrário, foi muito incentivado e até mesmo delineado pela sua família.

“Sou privilegiada neste ponto”, admite. Ana entende seu gosto por fazer música como algo “natural” desta criação. Apesar disso, sua história não é linear e foi permeada de muitos questionamentos de como inserir o ofício de musicista e artista na sua vida.

“Por não haver caminhos tão socialmente estruturados como em outras áreas, e por vivermos um período de MEI e uberização do trabalho, é impossível atuar como autônoma sem ser acompanhada de muitas inquietações”, relata.

Apesar disso, ela segue aprendendo, curiosa sobre como ser artista.

Etnomusicologia

Na universidade, Ana integrou o Grupo de Pesquisa em Gênero, Corpo e Música, coordenado pela professora Isabel Nogueira, e o Coletivo Medula, onde teve contato com estudos de gênero e música e uma amplitude de possibilidades de criação sonora com tecnologia, gravações de campo e paisagem sonora. Essa vivência na pesquisa e o contato com o trabalho de Clarissa Ferreira, em 2021, a incentivou a cursar o mestrado em Etnomusicologia, em 2022, com orientação da professora Elizabeth Lucas, referência na área.

Atualmente, está escrevendo uma etnografia sobre a articulação política de mulheres musicistas no RS, partindo da relação com o Peitaço da Composição Regional (Júlio de Castilhos) e a Roda Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba (Porto Alegre).

Não teve o costume de frequentar CTG após os seus 10 anos de idade, tampouco foi em festivais nativistas até recentemente. Sua vivência passa por acompanhar o pai em tertúlias quando pequena e experiências recentes de frequentar galpões e festivais como parte da atuação como musicista e pesquisadora. “Meu entendimento vem de relatos coletados de longas conversas com as colaboradoras da minha pesquisa de mestrado e da bibliografia pesquisada”, conta.

Ela afirma que os CTGs são “espaços de reencenação de uma cultura equestre, masculina, gaúcha e centrada no peão e nas danças folclóricas”. Mantém forte senso de comunidade e hierarquia, além de criar pertencimento a identidade cultural “que é fundamental para a socialização de diversos jovens”.

É preciso “pertencer” e, para muitas pessoas, a vivência no CTG é a representação direta de sua história como comunidade cultural, aponta a musicista. O movimento tradicionalista, que institucionalizou essas performances como símbolos estatais, se torna um “contexto poderoso para reproduzir ideologia, de uma forma tramada de dentro pra fora, depois de ser estipulado de fora pra dentro”.

Ana explica essas metáforas:

“O tradicionalismo foi fundado por um grupo de folcloristas nos anos 40, entre eles a dupla Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, que documentou manifestações culturais em viagens pelo Rio Grande do Sul. Ao determinar como eram essas manifestações, eles as preencheram com invenções próprias detalhes que não haviam encontrado. Isto, de forma bem resumida, resultou nas bases de um movimento de afirmação de identidade regional. Para conhecer mais, sugiro a leitura do Gauchismo Líquido (2021), onde a Clarissa Ferreira aborda essa invenção da tradição gaúcha, que coloca que toda tradição é de alguma forma inventada.”

Ela também recomenda a leitura do trabalho de Maria Elizabeth Lucas, Gaucho Musical Regionalism (2000), que demonstra como essa performance do “peão” em grupo se tornou um comportamento vinculado a identidade cultural regional, especialmente depois nos festivais nativistas a partir dos anos 70. Ou seja, começa de “fora pra dentro”, pois é descrita em um livro que depois foi reeditado e tomado como regras a serem seguidas.

“No momento que muitas gerações de crianças se desenvolvem em uma comunidade que reproduz esse senso de gauchismo e de cultura, que é ainda financiado pelos setores culturais públicos regionais, essa identidade passa a integrar o imaginário coletivo e o senso de si, de pertencimento dos gaúchos. Se torna algo sagrado, mas que não é tão antigo e primordial quanto parece. Outros trabalhos interessantes de conhecer são os livros de Ruben Oliven, A Parte e o Todo (1996), e o livro editado por Ilka Leite, Negros no Sul (1996)”, prossegue.

A mulher no meio tradicionalista

Os livros, segundo ela, tornaram-se uma referência para entender como o Rio Grande do Sul formou uma identidade cultural em oposição à identidade tropical brasileira, com um projeto político e econômico de estancieiros, baseado em concepções racistas e interesses de classe. Enfim, isso tudo para contextualizar um pouco desse movimento em uma pergunta que é tão complexa: Como é ser mulher no meio tradicionalista gaúcho?

Segundo Ana, o tradicionalismo se estabeleceu na supressão e hibridização de diversas manifestações culturais, e diretamente num apagamento da diversidade cultural no estado, porque foi formado a partir de ideias de uma classe média branca urbana. “Até aí tudo bem, o problema é que foi difundida como a única identidade regional.”

Pensando esse movimento dentro do seu contexto racial branco, de classe média alta, advindo dos clubes sociais brancos gaúchos do final do século XIX e início do século XX, as mulheres que podiam frequentar esses espaços eram mulheres brancas, e tinham seus papéis restritos aos cuidados domésticos, da casa, das rendas, e da gestão do lar. “Já se delimita aí um lugar de controle, de objetificação e de um endeusamento controverso das mulheres nestes espaços.”

Por outro lado, a inserção de pessoas negras nos CTGs foi acontecer depois dos anos 90. “Já nos anos 70 iniciaram-se os primeiros CTGs Negros, como uma forma de buscar representação estatal para suas comunidades, e igualmente uma forma de resgate de uma história negra gaúcha, que sofreu um apagamento também estético”, conta.

Uma entrevista com Mario Maestri em 2016, para IHU On-Line, que diz que os peões não eram maioria indígena ou brancos, que o Rio Grande era terra de negro escravizado, diferentemente do outro lado do Rio Uruguai. “O forte polo escravagista nas Charqueadas fez com que comunidades negras trabalhadoras no campo fossem maioria, mas a transformação disso em uma identidade cultural foi acompanhada de uma distorção e embranquecimento que ocorreu em todo Brasil. Então as mulheres, no meio tradicionalista, passam por uma história de silenciamento, de sobrecarga em trabalhos cotidianos e de objetificação.”

Ela destaca que o movimento feminista tem feito muito por resgatar uma história de mulheres diversas narradas de outros pontos de vista. “Eu me lembro de um trabalho de Patricia Hill Collins, que fala que ‘a mulher negra é a mula do homem branco, e que a mulher branca é seu cachorro’. É uma metáfora dolorosa, mas, como dizem as palavras da autora, para usar a metáfora de Nancy White, a mulher negra enquanto ‘mula’ sabe que é vista como animal. Em contraste, a mulher branca enquanto ‘cachorro’ pode ser similarmente desumanizada e, apesar disso, pode achar que faz parte da família, quando na realidade é apenas um animal de estimação bem cuidado. Ou seja, ainda temos muito caminho a percorrer.”

“A quem esse discurso serve?

Ana percebe muito mais um discurso feminista sendo apropriado pelo capitalismo como uma forma de ludibriar e de apagar as reais necessidades sociais, do que um engajamento pleno e uma atenção disposta à transformação social. “Tenho medo do deslocamento das palavras das minhas referências do nosso contexto, e transformadas em discurso vazio. Não acho que o identitarismo é produtivo, acho que ele serve ao capital. É importante escutar a voz de todas as mulheres. Mas o que elas estão falando? A quem esse discurso serve?”

Para ela, o feminismo como movimento não diz respeito às mulheres como indivíduos, mas a transformação social e a libertação de opressão machista e racista. Ao mesmo tempo, ela diz ficar muito feliz de ver “movimentos de mulheres diversas e de comunidades negras de afirmação do seu pertencimento, criação de novos símbolos em diálogo com os existentes, que entendem a tradição como algo ativo, mutante, e como um espaço político de transformação social”. Entende que a transformação vem a partir da liberdade de falar, em coletivo, especialmente com liberdade de escutar e de compreender.

Cita, dentre estes, o grupo Desagravo, música afro-gaúcha, com a cantora Renata Pires e o violonista Vladimir Rodrigues, que musicaram poemas do poeta Oliveira Silveira, um dos nomes representativos por trás do Dia da Consciência Negra. Também o trabalho que integra, dirigido por Clarissa Ferreira, Líricas Sulinas, grupo formado por Clarissa, Emily Borghetti, Tamiris Duarte, Nina Fola, e a própria Ana – que recentemente se apresentou com a Nega Mari, Mariana Marmontel do Coletivo Poetas Vivos, outro grupo que está movimentando pertencimento ao Rio Grande do Sul, no Unimúsica da UFRGS.

“Corpos de água”

“Vivemos um momento de crise ambiental, política e humanitária, e isso possibilita umas cutucadas mais profundas em nossos modos de vida e possíveis rupturas epistemológicas e ontológicas. Precisamos adiar o fim do mundo, referenciando Ailton Krenak. E é com a diversidade.”

Entre as histórias marcante da sua carreira, Ana relembra um trabalho muito gaúcho: ela e a dançarina Carol Mendes, indígena urbana, realizaram a performance “Mande Kuna: corpos de água”, em abril deste, ano no Centro de Referência Indígena na Cidade Baixa em Porto Alegre, sua casa de residência artística.

“Conversamos sobre as secas dos rios no Uruguai e colocamos em arte sonora (em tambor e pedal de loop) a história de uma água que desce pela montanha, despe-se de sua roupa, assenta-se no seu corpo, e se embola tanto que transborda. A Cacica Kerexu Takuá, sua liderança, comentou que a água não pede licença, ela diz que está. Isso foi bastante marcante porque três dias depois começaram as chuvas que deram início ao maio da pior catástrofe climática já vivida no Rio Grande do Sul, da qual ainda estamos vivendo uma reconstrução, um medo e um ‘novo normal'”, explica.

Para ela, durante essa “ruptura de estrutura, ambiental e corpórea”, o senso de identidade cultural institucionalmente estabelecido foi fortalecido por uma necessidade urgente de pertencimento, o que de certa forma fortalece uma vertente conservadora do gauchismo. “Por outro lado, novas vozes perguntam: como posso reinventar meu pertencimento? ou, de que forma quero que seja meu pertencimento e expressão cultural?”

Ana vê com muita gana e luta um movimento de mulheres indígenas matriarcas que estão lutando pela preservação da terra, através da ocupação de territórios e redes comunicativas. “Acho que isso não é mostrado como um pertencimento cultural, mas é muito gaúcho! Fico emocionada de ver uma luta pelo entendimento de que nós somos a terra, ela tem seus sangues, rios, pulmões, relevos, músculos, e precisa ser cuidada como tal. Esse pertencimento é curativo, e é um pertencimento a partir do agora, não do antes. Amo ver em músicas essa sensação, como sinto com as músicas da Clarissa Ferreira que abordam a emergência climática, degradação da pampa e formas de preservação do bioma. Se nós tivéssemos exposição à informação em mídias de conscientização ambiental tanto quanto temos a um consumo exploratório… Mas enfim, são muitas camadas!”

Como próximos passos, Ana pretende finalizar a dissertação, dar seguimento a essa atuação política e musical com os coletivos de mulheres e continuar aprendendo e tocando o samba com o coletivo Sambaiaiá. “Temos uma história de compositores sambistas riquíssima no RS, procure saber!”

Também está gravando seu primeiro álbum Cornelias e logo mais com Ana Clara e Clarissa, vai lançar o EP “Amiga”.  Essas movimentações musicais podem ser acompanhadas pelo Instagram da artista.


 
 

 

 

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