Funcionários e beneficiários denunciam violência em Centro Humanitário de Acolhimento (CHA)

Beneficiários e funcionários procuraram o Brasil de Fato para denunciar violações de direitos humanos dentro dos Centros Humanitários de Acolhimento (CHA), localizados em Canoas, na região Metropolitana, e Porto Alegre. Os relatos expõem uma preocupante realidade de violência e negligência. “O local, que deveria oferecer um lar para famílias vítimas das enchentes de maio de 2024, tem se tornado um espaço marcado pela insegurança, com situações de abuso de autoridade, tráfico de drogas, exploração sexual e circulação de armas brancas e de fogo.”

Construídos para acolher as vítimas da catástrofe climática, Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) foram projetados pelo Governo do Estado como lares temporários, equipados com dormitórios, áreas de convivência e espaços para atendimento médico. No entanto, conforme os relatos, um desses CHAs, denominado Recomeço, se transformou em um ambiente permeado pela violência, onde até agentes de segurança, como a Brigada Militar (BM), são acusados de agir com truculência.

Os denunciantes relatam um cotidiano de agressões que vão desde espancamentos e uso excessivo de força, com armas de choque (tasers), até intimidações envolvendo policiais e omissão de agentes da Organização Internacional para as Migrações (OIM), responsáveis pela administração do CHA.

De acordo com Lina*, funcionária do CHA Recomeço, ocorrem frequentes casos de “xenofobia, violência física e até violência doméstica”. Além das agressões físicas, ela narra um ambiente de insegurança em que beneficiários são desencorajados a registrar queixas formais. “Quando os beneficiários tentam registrar boletins de ocorrência na Brigada Militar, que está localizada dentro do CHA, são frequentemente desencorajados a prosseguir com a denúncia, inclusive na presença da OIM”, afirma.

Em outros incidentes dentro do CHA, a funcionária também relata que uma beneficiária idosa foi atacada e agredida por outra beneficiária, enquanto um policial militar e um agente da OIM assistiam à situação sem intervir. Em outro momento, duas beneficiárias também se envolveram em uma briga física na presença de diversos agentes da OIM e de um policial, que novamente não tomaram medidas. Outra beneficiária desapareceu após sofrer violência doméstica do marido (Lei Maria da Penha). Mesmo com o relato do desaparecimento e violência, a equipe de proteção da OIM demorou para agir, e quando a beneficiária retornou ao CHA, seu agressor ainda permanecia no local, sem que medidas de proteção fossem adotadas”, relata a funcionária.

Violações praticadas pela Brigada Militar

Lina* ainda denuncia agressões físicas e verbais praticadas pela própria Brigada Militar, todas com o conhecimento da OIM, incluindo dois beneficiários agredidos pelo mesmo policial dentro do CHA.

“Um beneficiário, em estado de alucinação, tentou buscar ajuda no posto da Brigada Militar à noite, mas foi brutalmente espancado por um grupo de policiais de plantão. Durante a agressão, ele foi atingido várias vezes com disparos de taser (choque), mesmo enquanto gritava por socorro. Agentes da Organização Internacional para as Migrações do Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Recomeço presenciaram a cena e não interferiram. O beneficiário precisou ser levado de ambulância à emergência, onde foram constatadas várias lesões físicas e traumas”, detalha. 


Beneficiários relatam agressões físicas e verbais praticadas pela própria Brigada Militar, todas com o conhecimento da OIM / Foto: Clara Aguiar

José*, também funcionário dos CHAs, relata: “A gente fica sabendo de casos graves dentro dos abrigos. Circula arma de fogo, sem restrição. Circula arma branca. Tem relatos de tráfico de drogas, de exploração sexual com conivência de funcionários contratados sem qualquer tipo de treinamento, de violência da Brigada Militar espancando gente dentro dos abrigos. Casos de pessoas que vão lá, entram na ala masculina para trocar favor por sexo com conivência de funcionários. Trocar por droga. E que também pessoas saem de madrugada para pegar droga e levam pros funcionários que estão lá”. Além disso, os funcionários também denunciam atividades ligadas a facções criminosas no local.

Insegurança constante 

O cenário de violência, porém, não se limita aos beneficiários. Moisés*, outro funcionário, narra temores constantes pela segurança da equipe. “Além de toda a vulnerabilidade que esses beneficiários estão passando dentro dos abrigos, a equipe hoje trabalha com medo, com insegurança. Isso, para mim, é muito grave. Você vai todos os dias para um local de trabalho onde você tem medo de entrar e não vê a hora de sair. Isso não é coisa de uma agência humanitária. Então, a gestão não consegue oferecer minimamente segurança para os funcionários.”

Lina* desabafa que a equipe da OIM “vive em constante estado de medo”. De acordo com ela, beneficiários já ameaçaram agentes, afirmando saber onde eles moram e até mesmo os seguiram fora das instalações do CHA. “Esses episódios de intimidação, aliados à presença de armas brancas com os beneficiários – algo que a BM e a gestão do CHA têm conhecimento, mas sobre o qual não tomam providências –, tornam o ambiente de trabalho insuportavelmente tenso e perigoso. Trabalhar nessas condições, cercados por ameaças e sabendo da omissão de proteção e segurança por parte da coordenação, faz com que o medo seja uma presença constante na vida dos agentes, que se sentem inseguros e abandonados em suas funções diárias.”

“Beneficiários se reúnem e fazem manifestações por conta do calor”

Os beneficiários denunciam que há “graves violações de direitos humanos” no CHA Recomeço, como alimentação inadequada, condições insalubres nos banheiros e restrições. “A gente passa muito calor aqui. Não temos ventiladores. Os únicos que têm ventilador são os da ONU,” relata a beneficiária Maria*, mencionando que enquanto os beneficiários enfrentam temperaturas sufocantes, as áreas destinadas aos funcionários são climatizadas.

Segundo ela, apesar do desconforto térmico nos alojamentos, os beneficiários são proibidos de permanecer no pátio após determinados horários devido ao toque de recolher imposto pela OIM, o que impede qualquer tentativa de aliviar o calor. “Aqui estamos em horários para se recolher, mesmo quando está muito calor lá dentro. Não pode ficar no pátio, senão a gente toma advertência,” conta. Maria* explica que após três advertências o beneficiário é “expulso” do CHA. 


Os beneficiários denunciam que há “graves violações de direitos humanos” no CHA Recomeço, como alimentação inadequada, condições insalubres nos banheiros e restrições / Foto: Clara Aguiar

A funcionária Lina* explica que, embora existam ventiladores movidos a energia solar que poderiam ser instalados, a OIM não providencia essa solução. “As unidades habitacionais se tornam extremamente quentes, criando uma sensação térmica insuportável, mas os ventiladores solares que poderiam amenizar a situação não foram implementados.” Ela confirma a disparidade entre o tratamento dado aos beneficiários e aos funcionários, que contam com áreas climatizadas e ventiladores em suas dependências. A justificativa é que as unidades habitacionais não podem possuir ventiladores devido à inflamabilidade dessas estruturas. 

Além do calor relatado, as condições sanitárias também são um problema. A beneficiária Maria* conta que “a comida já veio até azeda”. Segundo ela, as refeições, em algumas ocasiões, são entregues em estado impróprio para consumo. Também denuncia que os banheiros estão frequentemente entupidos, com água parada e lixo acumulado. “Os banheiros daqui são horríveis, cheio de lixo nos cantos e com chuveiros estragados”, diz. A falta de manutenção adequada dos banheiros representa riscos à saúde, especialmente para as crianças, que, segundo a beneficiária, não têm acesso a um atendimento médico regular e enfrentam dificuldades no acesso a medicamentos. “Não temos remédios para tratamento, e mal temos médicos para fazer nosso atendimento”, ressalta. 

Ainda de acordo com a funcionária Lina*, “os agentes da OIM escrevem e enviam relatórios diariamente sobre toda a rotina, intercorrências e ocorrências do CHA. Então a gestão está ciente e atua de forma a manter os riscos, as violências e as violações”.

Sobre os CHAs


O primeiro Centro Humanitário de Acolhimento (CHA), batizado de “Recomeço”, foi inaugurado em julho em Canoas / Foto: Joel Vargas/Ascom GVG

Após as enchentes que afetaram o estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, três Centros Humanitários de Acolhimento foram iniciados para receber as famílias atingidas. Somados, os três locais têm capacidade para receber 2.330 pessoas. Hoje, abrigam 853 pessoas no total. O Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Recomeço está situado na avenida Guilherme Schell, nº 10.470, próximo à passarela da Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), com capacidade para 630 pessoas. 

Além deste, há outros dois centros: o CHA Vida, no bairro Rubem Berta, na zona Norte de Porto Alegre, com capacidade para 850 pessoas, e o CHA Esperança, também em Canoas, localizado no estacionamento do Centro Olímpico Municipal, na Avenida Araguaia, 1151, bairro Igara, também com capacidade para acolher 850 pessoas. A construção dos CHAs é uma parceria entre o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e de Canoas, financiado pelo Sistema Fecomércio/SESC-RS. A OIM, Agência da ONU para as Migrações, é a responsável pela gestão dos CHAs em Canoas e Porto Alegre. 

Os Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) de Porto Alegre e Canoas, geridos pela Agência da ONU para as Migrações, a OIM, ainda abrigam 858 pessoas e são monitorados por câmeras 24 horas por dia. A segurança dos espaços é realizada pela Brigada Militar e por uma empresa terceirizada. A entrada e a saída são registradas para possibilitar o controle dos acessos aos CHAs.  

Governo do Estado e OIM afirmam que denúncias não foram registradas

Procurado pelo Brasil de Fato, o Governo do Estado afirmou em nota que as denúncias apontadas pela reportagem não foram registradas nos canais oficiais do governo e da OIM. No entanto, já estão sendo apuradas.  

Segundo a nota, em relação à atuação da Brigada Militar, o Governo do Estado e a OIM esclarecem que problemas pontuais já foram resolvidos e que os agentes que trabalham nos espaços passaram por treinamento para atuarem em contextos humanitários, baseado em princípios dos Direitos Humanos.

Confira a íntegra da nota:

“Para promover um atendimento humanitário e qualificado, conforme as normas da Organização, a OIM promove diversas capacitações, periodicamente, voltadas para as áreas de proteção, saúde psicossocial, prevenção de exploração e abuso sexual (PSEA) e comunicação com as comunidades, com seus funcionários(as).

A higiene do local, bem como a alimentação, também é realizada por empresas terceirizadas que receberam treinamento especializado para a prestação de serviço nos CHAs. São oferecidas três refeições por dia, servidas logo após a produção.  

Equipes de limpeza realizam a manutenção periódica e/ou por demanda dos banheiros para garantir o pleno funcionamento. Quando necessário uma manutenção robusta, os beneficiários são avisados com antecedência.  

Recentemente, foi contratada uma assessoria especializada em climatização para fornecer suporte e implementar melhorias nas condições térmicas das estruturas. As iniciativas em andamento incluem:

– Aquisição de ventiladores pela OIM para suporte imediato;
– Instalação de exaustores, com previsão para a próxima semana, fornecidos pela empresa especializada responsável pela estrutura dos CHAs.
– Elaboração de um sistema de dutos de refrigeração para o ambiente central, além das áreas de brinquedoteca e lactário (CHAs Vida e Esperança).

Sobre o atendimento médico, o espaço é voltado para atendimentos primários, com profissionais que realizam consultas iniciais. Caso necessário, estes profissionais encaminham os beneficiários a postos de saúde ou locais de referência do SUS. Também é oferecido atendimento via telemedicina.

Ao ingressarem nos Centros Humanitários, os beneficiários assinam uma carta de compromisso da OIM para que cumpram as regras de convivência, aceitando sanções correspondentes ao caso de não cumprimento delas, correndo risco, a depender da gravidade do caso, ou da recorrência, de serem desligadas do CHA. Em caso de constatação de qualquer crime dentro do Centro, as autoridades de segurança são acionadas imediatamente, sendo estas as responsáveis pela segurança do espaço.  

A OIM e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul trabalham juntos para garantir a proteção das pessoas e um ambiente seguro para todos. Se necessário, novas ou adicionais medidas de segurança serão implementadas.”


* Nesta reportagem, os nomes das fontes foram alterados devido à natureza das denúncias que envolvem situações de risco, tanto para beneficiários quanto para funcionários. Essa precaução visa garantir que os envolvidos possam relatar os abusos sem sofrer represálias, preservando sua segurança. Ao adotar essa medida, buscamos respeitar os princípios éticos do jornalismo e o direito à privacidade, assegurando que o sigilo da fonte seja mantido. A proteção das fontes é um pilar fundamental para garantir a livre manifestação e a denúncia de abusos sem receio de retaliações. O sigilo da fonte é um direito fundamental dos jornalistas, editores, diretores e proprietários de veículos de informação, que está previsto na Constituição Federal do Brasil, no artigo 5º, inciso XIV. Este direito assegura que os profissionais de imprensa não sejam obrigados a revelar a fonte de suas informações, nem a sofrer sanções por se recusarem a quebrar o sigilo. O sigilo da fonte é uma garantia constitucional que protege a liberdade de expressão e o direito de informar e ser informado. A liberdade de imprensa é um instrumento de democracia, pois permite que a população esteja bem-informada sobre assuntos de interesse público.


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