Verba para deputados federais do Brasil paga vinho no Uruguai; normas internas da Câmara não permitem o custeio de bebidas alcoólicas

A Câmara pagou R$ 212 milhões em cotas parlamentares para os seus 513 deputados em 2024. O recurso pode ser usado para custear viagens, alimentação e locomoção, fazer anúncios da atividade parlamentar e alugar escritório. Levantamento do Estadão, no entanto, identificou casos que parecem fugir da destinação original da verba criada para custear a atividade legislativa.

O dinheiro serviu, por exemplo, para pagar vinho e bancar passagens para Bonito (MS). Procurados, os parlamentares alegaram “erro da Câmara”, no caso da bebida alcoólica, e ida a uma excursão “políticopartidária”, sobre a viagem.

Todo mês deputados apresentam notas fiscais para a Câmara reembolsar despesas que deveriam ser ligadas estritamente ao trabalho parlamentar. Quando o gasto não cumpre as regras definidas pela Casa, o setor responsável “glosa” a nota e não paga o valor. Neste ano, foram barradas despesas que somam R$ 1 milhão. Isso ocorreu por irregularidades detectadas ou por gastos que excederam o limite previsto.

O deputado Giovani Cherini (PL-RS) faz parte do Parlamento do Mercosul (Parlasul) e costuma fazer viagens à sede, em Montevidéu, no Uruguai. Em junho, ele pediu reembolso de R$ 480,22 e apresentou duas notas fiscais, ambas do dia 17 daquele mês. Em uma delas, no valor de R$ 286,62, está registrado que o deputado consumiu duas taças de vinho e um cordeiro na brasa em um restaurante-hotel em Colônia de Sacramento, a cerca de 178 km da capital uruguaia. Apesar de ser proibido o custeio de bebida alcoólica, a Câmara restituiu o valor.

Procurado, Cherini disse que o erro não foi dele, mas da Casa. “A Câmara tem muitos funcionários só para cuidar de notinha. Não pode passar. Jamais vou fazer coisas que não estão dentro da lei”, afirmou. Questionada pela reportagem sobre quantos servidores atuam na área das notas fiscais, a Câmara não respondeu.

Erro técnico

Em julho, o deputado Pedro Aihara (PRD-MG) entregou cinco notas fiscais que continham bebidas alcoólicas e a Câmara ressarciu, indevidamente, o valor. O parlamentar alegou erro técnico e devolveu o dinheiro para a Casa. Em uma dessas notas, havia o registro de chopes consumidos em Copacabana, no carnaval.

A deputada Carla Zambelli (PL-SP), por sua vez, usou verba parlamentar para pagar R$ 3,8 mil em passagens aéreas para Bonito, cidade em Mato Grosso do Sul conhecida pelas belezas naturais. Ela e o marido foram vistos pelo escritor Jeferson Tenório enquanto faziam uma trilha em um parque. O roteiro incluía caminhada, mergulho e visita a um centro de recuperação de animais silvestres, na mesma semana em que fazia aniversário.

Procurada, Zambelli confirmou que fez a trilha em Bonito, mas disse que foi à cidade participar de “evento políticopartidário” em um sítio no interior do Estado, para receber delegação da Associação das Famílias para Unificação e Paz Mundial. A parlamentar não fez nenhum registro sobre esse evento nas redes sociais.

Em 2024, a Polícia Federal realizou duas operações em investigações sobre suspeita de uso irregular e desvio da cota parlamentar. Em outubro, agentes fizeram buscas em endereços ligados ao deputado Gustavo Gayer (PL-GO). Ele afirmou que a operação foi uma tentativa de prejudicá-lo.

Na semana passada, a PF vasculhou endereços vinculados a assessores dos deputados Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Carlos Jordy (PL-RJ) em uma investigação que apura suspeita de desvio de cota parlamentar. De acordo com a PF, “agentes públicos e empresários teriam estabelecido um acordo ilícito para o desvio de recursos”. Jordy negou irregularidades e disse ser vítima de uma perseguição. Sóstenes afirmou que tem convicção da lisura do trabalho realizado por seus assessores.

Assim como ocorreu nos últimos anos, a Câmara gasta mais dinheiro com a divulgação de atividade parlamentar. Foram R$ 81,8 milhões desembolsados até então. O recurso pode ser usado, por exemplo, para fazer panfletos ou custear equipes de comunicação para a produção de conteúdos nas redes sociais – desde que eles tenham a finalidade de informar sobre o trabalho dos deputados.

A publicidade da atividade parlamentar e o aluguel de carros (R$ 37,9 milhões) – a segunda maior despesa da Câmara – totalizam mais de 50% de tudo o que foi gasto pela Casa com cota parlamentar.

Átila Lins (PSD-AM) foi o deputado que mais gastou dinheiro da cota parlamentar neste ano até agora. A Câmara ressarciu R$ 577,2 mil por despesas apresentadas pelo parlamentar ao longo de 2024. A maior parte do gasto foi com o fretamento de aeronaves (R$ 311,8 mil) e com a divulgação de atividade parlamentar (R$ 108,3 mil).

Parlamentares amazonenses costumam usar mais do recurso de fretamento de aeronaves em razão da dificuldade de locomoção ágil entre cidades do Estado. Procurado, o deputado não se manifestou. (Estadão Conteúdo)

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