José Saramago: mais atual do que nunca

A literatura em sua dimensão crítica da realidade representa uma das maiores potencialidades da intelectualidade humana, capaz de trazer à luz do dia as maiores contradições e fragilidades da sociedade, e ao mesmo tempo possibilitando o “pensar” sobre quais caminhos podemos construir no intuito de superar os desafios colocados. Um dos gêneros da literatura que reserva espaço privilegiado para essa perspectiva crítica é o romance, talvez por conta de suas características, que, grosso modo, apresenta uma história relativamente longa, contada em prosa e geralmente situada no espaço e tempo.

Nesse sentido, temos obras que têm o poder de apreender nossa atenção e imaginação com tamanha profundidade que nos remete ao mundo infinito da leitura. Quando lemos, temos a possibilidade de ampliar sensivelmente nossas percepções e compreensões sobre o mundo que estamos inseridos e interagimos. É como se tivemos uma espécie de “bússola cognitiva” que nos ajuda a entender qual o melhor caminho a escolher, a seguir em frente.

Nesse cenário de potencialidades incontáveis, temos muitas possibilidades de escolha de “bússolas cognitivas”, e uma em particular será objeto deste breve texto: dentre a vasta e relevante biografia do grande escritor português José Saramago a sempre atual obra Ensaio sobre a Cegueira parece operar como uma cirurgiã, tamanha a sua precisão em nos oferecer uma tradução da realidade.

Em síntese, a obra trata de uma suposta e repentina “cegueira branca” que acomete os cidadãos de uma cidade e suas capacidades de visão submergem a um “mar de leite”, e a partir desse momento, por ser contagiosa, rapidamente a população passa a sofrer desse calvário, gerando um verdadeiro caos nas relações sociais que conduz os cidadãos à beira da barbárie. As regras e normas que regiam a localidade sucumbem, e a lógica da violência e instinto de sobrevivência passam a ser as ordens do dia. A estrutura do Estado entra em colapso e um quase estado de natureza passa a reger a realidade.

Entretanto, a interrupção da visão não atinge uma mulher que como protagonista da história observa e interage nesse cenário, demonstrando uma solidariedade fraterna com os enfermos da falta de visão, todavia, é acometida pelo sofrimento de presenciar a decadência das relações sociais e as chagas como elementos constituintes da realidade. A leitura desse livro exige do leitor um preparo emocional significativo, pois os mais variados sentimentos são despertados pela forma como o autor conduz a trama. A narrativa do livro é imensamente mais dinâmica e intensa, e por óbvio inviável a sua abordagem neste breve texto.

Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem

Todavia, a potencialidade metafórica do livro nos oferece uma profunda reflexão de como muitas vezes estamos “cegos” perante a realidade que nos rodeia, principalmente desde as dimensões sociais e estruturais de desigualdade. Perceber as nuances dos significados que nos alcançam possibilita um “abrir de olhos” para o não percebido. E a consequência está representada na melhor compreensão da vida social e pessoal, dessa forma, oferecendo melhores condições para tomada de decisões balizadas pela lucidez do que outrora não era depreendido.

Saramago pertence àquele restrito rol de seres humanos capaz de apresentar a realidade desnudada, sem filtros, sem máscaras, sem cinismos. Problematizando uma passagem do escritor brasileiro – Nelson Rodrigues – diria “a vida como realmente ela é”. A atualidade da obra de Saramago parece ser inquestionável, tendo em vista a crise de utopias e coerência que vivemos nos dias atuais, nos quais a convicção da luta por um outro mundo parece perder fôlego para o pragmatismo sistêmico do capitalismo. Ler José Saramago eu diria que se trata de uma ousadia, pois seu texto corta como navalha e sacia como fonte de inteligibilidade da realidade.  

A frase antológica contida nessa grande obra da literatura mundial parece nos desafiar: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”. E esse desafio é perene e incontornável para aqueles que tem o anseio da mudança por dias melhores. Por dias em que todos tenham o direito de viver em paz e com dignidade, onde a lógica da exploração entre os indivíduos pertença a um passado nunca esquecido para nunca ser repetido.

* Militante comunitário.

Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


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