Os riscos da estupidez coletiva

O mundo sempre foi um lugar perigoso. Nem todos os riscos, porém, são objeto de preocupação, particularmente aqueles de menor envergadura. Não é o caso do atual momento geopolítico, tensionado e aguçado com a volta de Donald Trump ao poder. Dono de uma personalidade singular, em vários sentidos, Trump começou o seu segundo mandato alguns tons acima do que já estava sendo esperado. Avaliações mais condescendentes, porém, enxergam Trump apenas como um jogador, um fanfarrão que escolheu ser presidente dos EUA para saciar a sua egolatria sem limites. Pode ser verdade, mas pode ser bem mais do que isso.

Nas análises mais realistas, a visão preponderante é de um reacionário imprevisível, comandando, a partir da Casa Branca, o maior arsenal militar e comercial do mundo, algo não exatamente trivial, muito pelo contrário. O novo Presidente americano reassume, essencial notar, também com o poder de controle nas duas casas do Congresso e conta ainda com a maioria de juízes conservadores na Suprema Corte. Esses imensos recursos políticos para impor mudanças, algumas delas já anunciadas, estão sob o juízo de alguém sem a possibilidade de reeleição, assumindo o cargo em avançada idade e tendo pela frente um quadro de extrema complexidade. Mais intrigante, nesse caso, é que as eventuais surpresas, que prometem ser muitas, podem não vir exatamente pelas realizações intencionais, mas pelos resultados não intencionais, decorrentes da personalidade idiossincrática de Trump e do grupo que o acompanha.

No momento, a superfície do mundo repousa em uma calma frágil, com sombras que se avolumam. Há, é perceptível, um convite silencioso e implacável ao caos que acreditávamos ter sido confinado ao passado, uma retórica assustadoramente desconectada dos últimos avanços civilizacionais, como maior justiça social, diversidade, equidade e respeito ao meio ambiente. Existe um movimento, inicialmente retórico, para além do próprio Trump, que apela para o desmonte desse modelo, para o nacionalismo xenófobo, para o isolacionismo e para o protecionismo comercial, fomentando aquilo que Dietrich Bonhoeffer trata como o fenômeno coletivo da estupidez, uma dinâmica da irracionalidade que, por vezes, acomete as sociedades, especialmente sob regimes autoritários e crises sociais. Não falamos, contudo, de uma falha intelectual, mas um problema moral e espiritual. Ela, a estupidez coletiva, surge sobretudo, quando indivíduos renunciam à autonomia crítica em favor de conformismo, submissão ou ideologias dominantes. Para o filósofo e teólogo alemão, a estupidez é uma forma de “perda de liberdade interior”, onde as pessoas se tornam receptivas a narrativas simplistas e manipuladoras, que justificam atos de injustiça e violência.

Por quase oito décadas, os Estados Unidos atuaram como âncora e mantenedor de um certo equilíbrio no sempre instável jogo de interesses entre as nações, promovendo democracia, comércio livre e segurança coletiva, pelo menos para o ocidente. Hoje, contudo, essa base parece estar se fragmentando, e o segundo mandato de Trump pode marcar o colapso definitivo dessa frágil arquitetura. Nesse sentido, os decretos que Trump já assinou têm o objetivo claro de confrontar as instituições multilaterais no âmbito global e a própria realidade material dos fatos. Ao sair do Acordo de Paris, da OMS, ameaçar, abertamente, os BRICS+ e abrir flancos de conflito com aliados tradicionais, a exemplo do Canadá, México e Dinamarca, Trump declara guerra ao multilateralismo, nega a possibilidade de novas pandemias planetárias, ignora as mudanças climáticas que ameaçam a raça humana e coloca o mundo em tensão máxima. Como um antídoto a esse convite à estupidez, à intolerância e aos preconceitos é preciso resistir. Mais perigosa que a maldade, a estupidez que campeia nesse momento e que é abraçada por lideranças opressivas, somente será enfrentada com a verdade e a educação crítica, pilares para a restauração da dignidade e liberdade humanas.

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