No Brasil, um Judiciário branco trava condenações por racismo, diz sociólogo

“Enquanto não tivermos, no universo do direito, um percentual de pessoas negras equiparável ao percentual delas na população, continuaremos com um universo jurídico permeado pelas crenças e representações da branquitude”. Quem fala assim é o doutor em Sociologia Renan Bulsing dos Santos, da UFRGS. 

Santos venceu o prêmio de Melhor Tese em Ciências Sociais de 2024, concedido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). A resistência do sistema de justiça brasileiro em condenar réus de ofensas raciais: a sacralidade da pessoa humana contra a hierarquização racial da branquitude é o título do trabalho. É sobre esse e outros assuntos que ele conversou com o Brasil de Fato RS

Brasil de Fato RS: O que motivou a escolha deste tema para tua tese: A resistência do sistema de justiça brasileiro em condenar réus de ofensas raciais: a sacralidade da pessoa humana contra a hierarquização racial da branquitude? 

Renan Bulsing dos Santos: O primeiro ponto disparador do interesse surgiu numa reunião de 2015 com professores e pós-graduandos do direito para debater o ensino de direitos humanos. Surgiu o assunto, então recente, do caso de racismo contra o goleiro Aranha, do Santos, num jogo contra o Grêmio, em Porto Alegre, em 2014. Na ocasião, uma das torcedoras gremistas foi filmada chamando o goleiro de “macaco”. Ela foi identificada, e essas imagens dela no jogo circularem por toda a imprensa.

Por que punir uma pessoa que comete racismo parece mais grave do que o ato em si cometido por ela?


“É preciso fortalecer políticas públicas de inclusão que nos conduzam à equidade racial” / Foto: Arquivo Pessoal

Na conversa sobre o fato com os juristas, me chamou a atenção a rapidez com a qual todos os acadêmicos e profissionais do direito presentes, todos com um perfil progressista e defensores de direitos humanos, manifestaram uma alta empatia com o sofrimento causado a essa moça por ter sido identificada dizendo algo racista. As reações foram nessa direção: “Poxa, ela foi hostilizada, ostracizada, perdeu o emprego, respondeu a processo judicial. Foi o bode expiatório de algo que uma multidão inteira estava fazendo. E nem era bem racismo de verdade, era só algazarra de torcida de futebol”.

E não houve nenhuma grande manifestação de empatia com a vítima. Era um homem negro exercendo a profissão dele. Não podia apenas ir embora, e estava sofrendo ofensas raciais de um estádio inteiro. Pediu intervenção dos árbitros e foi ignorado. A dor desse homem (vítima de racismo) parecia minúscula em comparação com a dor da mulher (ré de racismo).

Quis entender isso: por que, mesmo entre juristas progressistas, punir uma pessoa que comete racismo parece mais grave do que o ato em si cometido por ela? 

Há uma alta recorrência de absolvições em processos judiciais de racismo

Li artigos acadêmicos iniciais sobre o tema. Essas pesquisas já mostravam uma alta recorrência de absolvições em processos judiciais de racismo. Com muita facilidade os juristas ficam em dúvida se o ato de racismo aconteceu mesmo, se era racismo de verdade, se não era só uma brincadeira, se era grave mesmo, se precisava mesmo condenar, se a punição penal era mesmo a resposta adequada. É isso que chamo de resistência do sistema de justiça nesse tema.

Assim, construí a tese para analisar quais ideias sobre raça e racismo circulam no universo do Direito brasileiro, e como se constrói nos juristas essa sensação de baixa gravidade em atos racistas.

E quais são as conclusões que tirou? 

Vou tentar ser sucinto: a primeira conclusão é uma baixa sofisticação técnica por parte dos magistrados ao fundamentarem suas decisões em casos de ofensas raciais. Apresento na tese seis indicadores apontando isso. Um deles é a ausência de diálogo dos magistrados com a produção de conhecimento sobre raça e racismo feita em áreas como a sociologia, a história e a antropologia. Eles se restringem a citar só a teoria jurídica para decidir sobre um tema que envolve comportamentos estruturais da sociedade brasileira, envolvendo a perquirição de algo interno, que seria a tal da intenção racista.

Não há dúvida da necessidade dos magistrados recorrerem a conhecimentos externos ao direito

Em outros temas, não há dúvida da necessidade dos magistrados recorrerem a conhecimentos externos ao direito. Por exemplo, em um processo de contaminação da água causada por uma mineradora, e resultando no adoecimento da população ribeirinha. Os juízes sabem que não possuem a capacidade técnica para fazerem eles mesmos a avaliação dessa água, se a quantidade de produto químico estava em patamares aceitáveis ou não. Por isso, recorrem a laudos técnicos de áreas além do direito; recorrem à teoria produzida por profissionais de outras áreas, capacitados para esse tipo de medição.

Mesma coisa em casos de processos por erro médico em cirurgia, causando algum dano ao paciente. Avaliar se houve ou não algum excesso do médico, se houve ou não alguma imperícia ou negligência, é algo que só a teoria jurídica é incapaz de avaliar. É preciso recorrer a laudos médicos, é preciso recorrer à literatura médica.

No entanto, em casos de ofensas raciais, os juízes não têm essa mesma atitude de recorrerem a uma teoria externa ao direito. Pressupõem já terem o conhecimento necessário. Consideram que a teoria jurídica sobre o tema já é suficiente. E isso num contexto em que não é parte do currículo básico das graduações em direito no Brasil nenhum tipo de disciplina específica. Não existe um, digamos, direito das relações raciais no Brasil configurado nesse formato. Ocorrem debates sobre raça e racismo de forma espalhada, um pouco no direito constitucional, um pouco no direito penal. Mas ainda não é uma parte explícita, concreta e obrigatória na formação jurídica o entendimento sofisticado de como as ofensas raciais operam no cotidiano brasileiro, e de como avaliar a intenção nesses cenários. 

Desembargador absolveu alguém que chamou homem negro de “preto de merda”, alegando que a expressão não tinha a ver com racismo


“Ao agir de modo racista, a pessoa está aderindo e legitimando (ainda que de modo não consciente) essa maneira injusta de organizar as coisas” / © Wilson Dias/Agência Brasil

Outro indicador de baixa sofisticação técnica é a recorrência com que aparecem, em decisões judiciais, argumentos que chamo de pura e simples tolice. São afirmações apresentadas com certo verniz jurídico, mas que, examinadas em detalhe, são pura e simples opinião solta, e muitas vezes, incoerente, ou até sem sentido. 

Um exemplo muito visível disso é a decisão de um desembargador ao absolver um cliente que chamou um prestador de serviço negro de “preto de merda”. O magistrado argumentou que essa expressão não tinha nada a ver com racismo. O réu só queria expressar sua raiva ofendendo com a palavra “merda”, mas para evitar dúvidas sobre qual sujeito presente no recinto ele estaria ofendendo, ele teria acrescentado o termo “preto”. Concluir isso não tem nada de técnica jurídica. Não faz nem sentido do ponto de vista da interpretação de texto mesmo. 

Para além do racismo em si, esse não é o modo como o brasileiro opera em relação a xingamentos. Se uma pessoa enraivecida chama a outra de “juiz de merda”, ou “sociólogo de merda”, ou “jornalista de merda”, essa pessoa está necessariamente fazendo duas coisas: está xingando o outro enquanto indivíduo, e está agravando esse xingamento ao reconhecer esse sujeito como parte de um coletivo que é todo defeituoso. Não faz sentido argumentar que a pessoa, ao dizer “juiz de merda”, está insatisfeita apenas com este juiz em específico, sem nenhum tipo de insatisfação adicional com a categoria profissional a qual ele pertence. E isso é algo da lógica do próprio idioma.

É a isso que me refiro quando afirmo haver uma pobreza argumentativa nas decisões sobre racismo. E me propus a entender qual é o processo alquímico que faz com que a tolice soe como um argumento jurídico técnico legítimo para fundamentar uma decisão de absolvição. 

Quando negros são réus em processos de furto, roubo ou tráfico os processos andam com muita velocidade

Quais os fatores que explicam a resistência do sistema de justiça em reconhecer as ofensas raciais? 

Eu afirmo haver uma resistência do sistema de justiça em reconhecer as ofensas raciais na medida em que há um extremo rigor na avaliação de cada uma das etapas, tanto antes como durante o processo judicial, até se chegar a uma decisão definitiva de mérito. Tudo precisa seguir o protocolo nos mínimos detalhes, as provas precisam ser muito robustas, muito concretas. Com muita facilidade, os processos são arquivados, ou nem mesmo iniciados. 

Esse extremo rigor talvez devesse ocorrer em todos os processos de todos os assuntos, mas não é o que acontece quando pessoas negras, ao invés de vítimas de racismo, estão sendo acusadas de crimes. Quando negros são réus em processos de furto, roubo ou tráfico, o rigor do sistema de justiça não aparece; os processos andam com muita velocidade, pessoas negras são presas com base em provas muito frágeis. E a disposição em absolver os réus nesses casos também some.

E sim, o ideal seria termos um sistema que preza pelo princípio da inocência. Um sistema preocupado em não condenar inocentes. Mas é curioso como essa preocupação aparece nuns casos, e some em outros. Na minha tese, montei um grande estado da arte de todas as pesquisas que já coletaram decisões judiciais sobre ofensas raciais. Em nenhuma aparece algo próximo de um “excesso punitivo” por parte dos magistrados nesse tema. 

Ainda assim, um manualista do direito penal muito conhecido, muito utilizado nas graduações em direito, ao abordar os crimes de racismo, fez questão de explicitar sua preocupação de que crimes de racismo fossem analisados com muito cuidado, para se evitar o problema grave de condenarmos inocentes. Mas esse mesmo manualista não apresenta essa mesma preocupação quando aborda os crimes contra o patrimônio, pelos quais há um alto índice de pessoas negras inocentes encarceradas.

A hierarquização moral da branquitude é internalizada pelos juristas


“Entendo a branquitude como um sistema simbólico construído a partir da legitimação da distinção racial” / Foto: Carol Mendes

O principal fator que explica essa resistência é a ampla circulação das representações da branquitude no universo do direito, e como a hierarquização moral da branquitude é internalizada pelos juristas. Isso orienta a intuição moral dos juristas, que acabam tomando decisões em casos como os de racismo menos com base nos fatos e nas provas, e mais com base no que já está colocado de forma anterior ao caso (a crença de que racismo “de verdade” não existe, ou é muito raro, ou não é tão grave assim, ou não ocorreu neste caso em específico, ou é mais grave punir o réu do que o ato cometido, etc.).

Importante lembrar que o percentual de autodeclarados negros no Brasil corresponde a 56% do total da população; sendo que 10,6% desses são autodeclarados pretos. Contudo, apenas 12,8% de magistradas/os são negras/os, segundo a pesquisa Negros e Negras no Poder Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ainda de acordo com o mesmo levantamento, 5% da magistratura brasileira é composta por mulheres negras…

Sim, comento esses números no capítulo 6 da tese. Reuni um conjunto de dados com os percentuais de pessoas pretas e pardas presentes no universo do direito em, pelo menos, quatro áreas de enunciação do direito: os docentes em direito (quem ensina), os juízes (quem julga), os legisladores (quem cria as leis) e os hermeneutas (quem teoriza sobre o direito). Quando juntamos esses dados, encontramos uma porcentagem muito baixa de pessoas negras nesses quatro postos.

Se temos um universo do direito no qual as pessoas negras estão ou ausentes, ou em baixa proporção, isso contribui para que as representações da branquitude circulem com muita facilidade. 

A falta de pessoas negras, a falta de interesse dos brancos por temas e/ou perspectivas alinhadas à equidade racial, resulta em não haver nenhuma, ou muito baixa, oposição aos ideais da branquitude. É muito difícil desafiar essas ideias e essas crenças, que circulam com muita facilidade e contribuem para a continuidade desse fenômeno que eu chamo de resistência. 


“Uma primeira medida importante é garantir a presença das minorias raciais nos quatro postos de enunciação do direito” / Foto: Arquivo Pessoal

O pacto da branquitude se espelha no sistema de justiça…

Sim. Abordo o pacto da branquitude na tese, mas seguindo uma outra linha teórica. A minha orientadora, a professora Raquel Weiss, é uma das principais, se não a principal teórica do Brasil que estuda a teoria do sociólogo francês Émile Durkheim. Ele é um dos principais fundadores da sociologia enquanto área do conhecimento. Dentre as várias linhas teóricas dele, existe a sociologia da moral, principal foco de estudos da minha orientadora. 

Um conceito importante da sociologia da moral durkheimiana é o de comunidades morais. Coletivos que se formam e operam dentro de certa hierarquia valorativa, e se alinham em torno dela. Quando olhamos o direito enquanto uma comunidade moral, e, de modo mais específico, a magistratura, fica evidente o quanto os valores da branquitude pautam muito essa hierarquia valorativa. O direito brasileiro foi construído a partir desse referencial, e segue sendo muito pautado por essas representações, e por esse alinhamento emocional a essas ideias.

Esse é um outro caminho para abordar um mesmo fenômeno que a Cida Bento (psicóloga paulista que estuda a desigualdade racial) nomeou como pacto da branquitude. Como temos um alto percentual de juízes brancos, formados por professores brancos, julgando a partir de leis produzidas por pessoas brancas, e fundamentando decisões com a teoria produzida por hermeneutas brancos, o resultado é um grande alinhamento na direção de se manter esse status quo de extrema desigualdade racial.

Qual seria o conceito de branquitude? 

Entendo a branquitude como um sistema simbólico construído a partir da legitimação da distinção racial. Chamo de distinção racial algo composto por quatro elementos. 

Primeiro, a divisão da humanidade em raças. Raça sendo um agregador de características fenotípicas e ou culturais, que seriam supostamente óbvias, perceptíveis apenas ao olhar para a pessoa. 

Segundo, a hierarquização moral desses grupos. Ou seja, não é apenas uma identificação de que existem grupos de pessoas com certas características físicas ou culturais. É atrelar a essas características certa valoração moral. É colocar em patamares diferentes de positividade e negatividade. 

Terceiro, a distribuição desigual de benefícios e acessos em função dessa hierarquização. Quanto mais ao topo da hierarquia racial, mais você será identificado como possuidor dessas características positivas e, portanto, merecedor de benefícios. E aí você vai circular com muita facilidade, terá acesso facilitado aos postos de enunciação, e a todos os benefícios da vida coletiva. Quanto mais lá embaixo da hierarquia racial, menos merecedor, e mais a sua vida será dificultada, menos acesso você terá a bens e lugares. 

O preconceito racial tem menos a ver com maldade ou burrice e sim resulta desse sistema injusto organizador da vida coletiva

Por fim, o quarto é a naturalização dessa distribuição desigual de benefícios e prejuízos. Há um forte discurso invisibilizando o quanto a raça é o parâmetro principal organizando essa distribuição desigual, ao mesmo tempo que há um forte discurso afirmando que essas coisas se distribuem apenas pelo mérito individual. Na verdade, em paralelo a méritos e deméritos das pessoas, há uma enorme estrutura social que facilita muito ou dificulta muito que você alcance os espaços que deseja, que é tornada algo natural, comum, espontânea.

Portanto, a branquitude estabelece e dissemina um conjunto de representações coletivas que ordenam nossa vida coletiva a partir dessa distinção racial da humanidade. 

Aqui é importante enfatizar que preconceito racial ou discriminação racial tem menos a ver com uma maldade intrínseca de alguém. Ela é menos algo que decorre de uma burrice, ou de um mau-caratismo específico. Ela tem mais a ver com esse sistema injusto organizador da vida coletiva. Ao agir de modo racista, a pessoa está aderindo e legitimando (ainda que de modo não consciente) essa maneira injusta de organizar as coisas. 

E é injusto porque é anterior: nenhum ser humano consegue escolher a raça na qual vai pertencer antes de nascer, e a hierarquização moral dos grupos raciais não decorre de uma avaliação isenta a respeito do mérito ou demérito coletivo dessas pessoas. Ela é uma imposição criada por quem tinha a intenção de ocupar o topo hierárquico e se manter lá. É uma estrutura social que permanece existindo hoje, muito ativa e se reinventando. A branquitude é muito eficaz nisso. 

A branquitude opera de maneira parecida com estruturas similares, como, por exemplo, o machismo

E a branquitude opera de uma maneira muito parecida com outras estruturas similares, como, por exemplo, o machismo. A distinção de gênero, tal como a distinção racial, também estabelece grupos com diferenças externas supostamente óbvias, hierarquiza, atribui qualidades e defeitos, torna essas diferenças algo “natural”, estabelece uma distribuição facilitada de benefícios a uns (homens) e prejuízos a outros (mulheres), e se invisibiliza, se apresenta como algo natural, espontâneo.

Não é um acaso que homens brancos sejam a esmagadora maioria em posições de poder – incluindo o alto escalão do sistema de justiça.

Que medidas precisam ser tomadas para reverter esse quadro?

Uma primeira medida importante é garantir a presença das minorias raciais nos quatro postos de enunciação do Direito mencionados antes. Enquanto não tivermos, no universo do direito, um percentual de pessoas negras equiparável ao percentual delas na população, continuaremos com um universo jurídico permeado pelas crenças e representações da branquitude. 

É preciso repensar o modo como se fala sobre raça e racismo na própria graduação em direito

É preciso fortalecer políticas públicas de inclusão que nos conduzam à equidade racial. É preciso que pessoas pretas possam se graduar em direito, possam dar aula de direito, possam ser legisladoras, juízas, teóricas do direito. 

Outra medida importante seria repensar o modo como se fala sobre raça e racismo na própria graduação em direito. Talvez fizesse sentido que surgisse, pois ainda não há, uma disciplina específica de direito nas relações raciais no Brasil, e que ela fizesse parte do currículo mínimo das graduações. No entanto, saliento que o mais importante aqui é menos o formato de disciplina em si, e mais o oferecimento de um letramento racial verdadeiro aos juristas. Digo isso pois temos uma tradição bacharelesca no direito, um modelo de ensino ainda muito baseado na repetição de jargões jurídicos. 

Um assunto que abordo na tese, via sociologia da moral, é que a comunicação de valores é pouco eficaz quando se baseia apenas na argumentação racional. Você pode fazer uma pessoa repetir todos os dias a frase “somos todos iguais perante a lei” que disso não resultará em essa pessoa de fato trate todo mundo com igualdade. O valor constitucional da igualdade de todos perante a lei não vai se tornar um valor concreto para os juristas se não for internalizado numa lógica emocional. Se nós quisermos que haja um comprometimento dos juristas com os valores constitucionais, essas pessoas precisam passar por processos formativos nos quais esses valores sejam vivenciados. 

Uma pessoa branca, que viveu a vida inteira em espaços majoritariamente brancos, estudando numa faculdade com colegas brancos, ensinada por professores brancos, vivencia concretamente algo muito distinto do ideal da igualdade de todos perante a lei. Repetir essa frase, decorar a constituição, não tende a produzir um alinhamento substantivo a esses valores. O ensino do direito precisa adotar outras estratégias pedagógicas para que um letramento racial possa, de fato, ocorrer. 

E que estratégias seriam essas?

Não me propus na tese a abordar esse tema e não tenho formação específica em pedagogia para afirmar. Como palpite, uma direção que me parece interessante é a de estratégias como o sociodrama, no qual um facilitador conduz uma cena, e o processo de aprendizagem ocorre com o deslocamento de si. Num ambiente controlado, é possível vivenciar fatos como um episódio de racismo, mesmo sendo um homem branco. Por mais que seja algo teatral, por mais que seja uma ficção temporária, processos como esse, conduzidos por técnicos qualificados, conseguem produzir deslocamentos na subjetividade dos participantes, internalizam certas percepções numa direção emocional, possibilitam a aderência a outros valores. 

Mas isso é uma opinião pessoal. O debate sobre quais estratégias seriam mais adequadas precisa ser feito por profissionais com uma formação e uma experiência que eu não tenho.

Uma universitária ré de racismo foi absolvida em janeiro sob o argumento de que a condenação criaria obstáculos para a carreira da acusada

Mensagem final?

A escrita da tese foi concluída em setembro de 2022. A defesa ocorreu em março de 2023. Estamos em 2025 e, no último dia 24 de janeiro, circulou na imprensa a notícia sobre uma universitária ré de racismo absolvida em São Paulo. Um dos argumentos adotados pelo juiz na fundamentação foi: “uma condenação criminal por delito desta natureza irá implicar em enormes e, muito provavelmente, intransponíveis obstáculos a sua carreira”.

Gostaria muito que a minha tese um dia se tornasse obsoleta; que virasse apenas um documento histórico, descrevendo uma época já ultrapassada. Infelizmente, ainda não chegamos lá.


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