Transporte coletivo em tempos de crises – capítulo 3

 

Acompanhe a série de artigos do advogado socioambiental Mauri Cruz, uma parceria do Brasil de Fato RS e o Instituto de Direitos Humanos – IDhES, para debater alternativas à crise da mobilidade urbana no Brasil.


Para pensarmos qual tipo de mobilidade é ideal para as cidades, precisamos olhar para como, cada um de nós, se comporta quando precisa se deslocar para atender ir ao trabalho, estudo, ir ao comércio ou visitas amigos.

Se pararmos para pensar, vamos concluir que, todos os dias, nós, como usuários do sistema de mobilidade, escolhemos a alternativa a partir de critérios bem concretos como, as condições de acessibilidade, ou seja, que possa usar a alternativa no momento desejado, a segurança, portanto, que não iremos nos expor a riscos, que leve o menor tempo até o destino desejado e, principalmente, que esteja dentro das nossas condições físicas e econômicas.

Quem leu o capítulo anterior, já compreende que as respostas a estas questões difere de uma pessoa para outra, porque dependerá das condições econômicas e sociais de cada um. Uma pessoa de classe média, que possui automóvel na garagem e tem razoável poder aquisitivo, pode escolher entre ir com seu próprio veículo, optar por um táxi ou um aplicativo.

Já, as pessoas das classes populares, que residem nas periferias, precisam escolher entre fazer o deslocamento de transporte coletivo ou a pé. Importante ressaltar que, a partir de 2014, dependendo da distância do deslocamento, estes setores tiveram acesso aos aplicativos, embora utilizar esta alternativa regularmente, compromete muito o orçamento familiar.

Há, ainda, as pessoas que não possuem nenhum recurso, nem mesmo para o transporte coletivo. Desempregados, população em situação de rua, pessoas em vulnerabilidade extrema. Para estas pessoas, a única opção é o deslocamento a pé ou desistir de fazê-lo.

Como podemos observar, a escolha do modal de deslocamento, longe de ser consequência de uma cultura individualista, decorre da forma como é concebida, planejada e implementada a política da mobilidade nas nossas cidades. Ela tem sido concebida unicamente para viabilizar o automóvel e, neste contexto, esta sempre será a melhor opção.

Isto decorre do fato de que, o planejamento e implantação dos sistemas viários, a conexão criada entre as vias secundárias e estruturais, a preocupação permanente dos técnicos em garantir a fluidez para reduzir o tempo de deslocamento, em manter as vias em condições adequadas para garantir o conforto, a sinalização e as medidas de operação e controle do tráfego, tudo para que o automóvel circule sem restrições.

Em síntese, para o modal automóvel o sistema é integrado, sistêmico, com fluidez, com facilidade de acesso aos locais para embarque e desembarque, com estacionamentos seguros em todos os polos de geração ou de atração de viagens. Em síntese, o condutor sai da garagem de sua casa e estaciona dentro do shopping, no estacionamento da escola, próximo ao comércio de rua. Quem tem acesso ao automóvel, tem a cidade aos seus pés, ou seria melhor dizer, sob suas rodas.

Deste ponto de vista, o surgimento dos veículos individuais por aplicativos não deixam de ser uma forma de democratização de acesso a cidade para uma grande parcela da população que não tinha este direito. Embora eles tenham sido responsável pela queda da demanda nos sistemas públicos de transporte coletivo, impactando na redução de oferta de viagens e na elevação das tarifas, uma parcela da periferia atualmente consegue se deslocar com maior facilidade pela cidade, não estando refém das redes e linhas de transporte coletivo, nem sempre disponíveis ou integradas entre si.

Olhando por esta perspectiva, o sistema de mobilidade não pensa o transporte coletivo. As linhas não são concebidas numa lógica de rede, mesmo com o advento da bilhetagem eletrônica, não há integração plena entre veículos dos sistemas de transportes coletivos urbanos, metropolitanos e intermunicipais, há restrições de uso pelo política e custo tarifo. O sistema viário não prioriza o transporte coletivo que segue espremido entre os automóveis, com frotas envelhecidas, locais de embarque e desembarque mal-cuidados e, muitas vezes, distantes dos polos de atração de viagens. Os diversos modais de serviços de transporte público – metro, ônibus, seletivos, microônibus, táxis, bicicletas de aluguel – não estão integrados. São ilhas dentro de uma mesma política pública.

Por tudo isso, em todas estas situações de deslocamentos, a escolha pelo transporte coletivo é sempre por não haver outra opção melhor. É uma não escolha. Está mais para uma contingência.

A contradição é que, apesar da supremacia da alternativa automóvel e das péssimas condições dos transportes coletivos, a divisão modal demonstra que um percentual bastante significativo de pessoas dependem exclusivamente das alternativas coletivas para circular pelas cidades. Estudo publicado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2023 indica que, nas regiões metropolitanas brasileiras, a maioria dos deslocamentos ainda são realizados pelos modais de transporte coletivo, atingindo um percentual de 38,97%. Em segundo vem os deslocamentos denominados de transporte ativo, deslocamentos a pé, de bicicletas, skate ou patinetes não motorizados, com um percentual de 32,71%. Isso significa que, embora os automóveis tenham capturado toda atenção, os privilégios e os recursos das políticas de mobilidade, eles são responsáveis por apenas 28,32% dos deslocamentos, somados aqui, além dos deslocamentos com veículos particulares, os deslocamentos por taxi e aplicativos.

Para se ter uma noção mais concreta destes números, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o total de viagens motorizadas é de aproximadamente 75 milhões de viagens/dia, incluídas aqui todas os modais. Se excluirmos os dados do transporte ativo do estudo da CNI, a divisão modal entre o transporte coletivo e o transporte individual é de 42% para os modais coletivos e 58%, respectivamente. Isso significa que, no Brasil, diariamente, são realizadas 31,6 milhões de viagens em modo individual contra 43,5 milhões de viagens por transporte coletivo. Importante reconhecer que esses números, embora majoritários, refletem a tendência de queda dos usuários do transporte coletivo em comparação com o transporte individual, queda essa atribuída a vários fatores, incluindo a pandemia de covid-19 e as mudanças tecnológicas que viabilizaram o home office e reduziram a necessidade de viagens em vários processos de trabalho e, sem dúvida, das elevações das tarifas públicas.

Nestas condições, impossível imaginar uma migração da demanda do transporte individual para um sistema coletivo de transportes. Então, o que fazer para construir uma política de mobilidade de qualidade, inclusiva, sustentável e democrática?

Não há dúvidas que temos propostas para solucionar o tema da mobilidade. Essas propostas incluem uma série de iniciativas, de reorganização do sistema viários, reorganizar a rede, integração intermodal, alteração do padrão da frota, flexibilidade, redução ou mesmo eliminação das tarifas públicas, qualificação dos equipamentos coletivos e adoção de tecnologias inovadoras para facilitar o acesso, uso e qualidade dos serviços.

Mas para que estas medidas sejam implementadas têm uma premissa: a mudança do paradigma que vê o automóvel como a principal opção para os deslocamentos nas cidades. Quem crê ser este o modal principal, jamais irá concordar em redirecionar recursos públicos e privados para organizar uma outra concepção de mobilidade. São os defensores da cidade da exclusão.

Para uma cidade inclusiva, a mobilidade sustentável que imaginamos, tem como primeira premissa a redução das necessidades de deslocamentos. Isto mesmo, é uma mobilidade que busca reduzir os deslocamentos motorizados, disponibilizando próximo aos locais de moradia um conjunto de alternativas de trabalho, estudo, saúde, esportes, cultura e de convívio social. Essa mudança de uso e ocupação do espaço urbano, subverte a lógica de destruir espaços construídos para viabilizar novas vias para veículos. Pelo contrário, esta concepção valoriza os espaços já construídos, preservando, qualificando e dando novos usos a estes espaços. Isso significa repensar o planejamento urbano, limitando a expansão viária só focada na busca da fluidez para os veículos. Importante nos darmos conta que, um condutor quando usa uma via expressa na cidade, ele não está atendendo uma necessidade. Na verdade, ele está se deslocamento para atender a uma necessidade. Se o atendimento desta necessidade estivesse próximo a sua casa, ele não necessitaria da via expressa para se deslocar.

A outra premissa diz respeito a ampliação das possibilidades de deslocamentos. Sim, uma cidade acessível deve criar condições para que qualquer pessoa, a qualquer hora, possa ir a qualquer lugar. Essas condições, se pensadas para todas as pessoas, não é possível ser viabilizada pelo modo individual de deslocamentos. É preciso criar uma rede de transportes públicos, sejam coletivos com metros, veículos leves sobre trilhos, ônibus e microônibus, sejam individuais, como táxis, aplicativos e transportes alternativos, todos integrados entre si, que deem conta das diversas necessidades de deslocamentos em toda cidade. Para conectar estes vários serviços de transporte público é necessária a construção de uma infraestrutura e equipamentos qualificados, como terminais de integração, pontos de conexão, de embarque e desembarque modernos, bem como, os modais públicos devem ter prioridade no sistema viário, em relação ao transporte privado individual.

Retornando a parte inicial deste capítulo, para garantir que estes serviços sejam a primeira opção quando da escolha de cada um de nós na hora de organizar nossos deslocamentos, é fundamental que as alternativas públicas, coletivas ou individuais, sejam melhores, mais rápidas e mais baratas que a alternativa privada, ou seja, o automóvel.

Isso só será possível com duas medidas combinadas: o aporte de significativos recursos públicos para o planejamento, organização, construção, operação e controle destes sistemas públicos de transportes, com o fortalecimento da capacidade de planejamento e gestão do estado. Medidas como a tarifa zero, o cartão mobilidade e os aplicativos municipais de transporte são importantes neste processo de transição dos deslocamentos individuais para os coletivos. Junto com isso, a adoção de medidas de restrição de circulação dos automóveis individuais, de pedágios urbanos e de zonas restritas para circulação de automóveis também contribuirão para o processo de transição.

Claro que, tudo isso, depende de uma radical alteração na mentalidade de boa parte de nossas sociedades e da alteração da correlação de forças com os setores econômicos da cadeia do petróleo e da indústria automobilística. Mas isso aí já tema para o próximo capítulo.

* Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós-graduação em direito a cidade, mobilidade urbana e gestão de políticas públicas. Diretor Executivo do Instituto de Direitos Humanos – IDhES, membro do CAMP Escola do Bem Viver e Consultor da Usideias.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


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