‘A educação tem que ser pública e não mercantilizada’, diz nova presidenta do CPERS

Com quase 32 anos de magistério, a professora Rosane Zan dirigirá o CPERS de 2025 a 2027, após vencer uma eleição onde obteve 71,1% dos votos. Ex-tesoureira-geral do sindicato dos professores estaduais do Rio Grande do Sul, um dos maiores da América Latina, nesta entrevista ela aborda a relação da categoria com o governo Eduardo Leite (PSDB), o tema da evasão escolar no ensino médio, a histórica defasagem salarial dos professores e funcionários de escolas, a proibição do celular nas salas de aula, os riscos da terceirização, os avanços da precarização e da privatização e os projetos e embates previstos para 2025.

Acompanhe: 

Brasil de Fato RS – Qual a situação hoje das escolas no Rio Grande do Sul? Sabemos que, além da desvalorização salarial, da terceirização, da mercantilização, as enchentes atingiram muitas escolas. Obras estão acontecendo mas lentamente e nem todas as escolas se recuperaram. Qual, enfim, é o cenário quando se inicia o ano letivo? 

Rosane Zan – Bem, em 2021 visitamos mais de 600 escolas. Fizemos denúncia, um dossiê sobre a situação. Entregamos para a Secretaria de Educação, para os deputados. Sempre tivemos esse papel. Só que hoje, pós pandemia, e mesmo durante a pandemia, os professores tiveram um acúmulo exagerado em termos de sobrecarga de trabalho. 

O governo está estruturando 33 escolas para entregá-las para a iniciativa privada

Houve as tais planilhas, que cada vez mais são parte muito mais burocratizada dentro do espaço da escola, do que via de produção de conhecimento dentro da escola. É uma visão maquiada e com isso não podemos concordar. Agora o governo (estadual) quer organizar novamente as escolas. Pegou a maioria das escolas aqui do grande centro de Porto Alegre, em torno de 33, e está estruturando para entregá-las para a iniciativa privada. 

A própria enchente demonstrou e a venda da CEEE foi um exemplo. Quando tivermos qualquer problema de estrutura dentro da escola, vamos ligar para um 0800 para nos dizerem quando eles vão poder nos atender? Como vão estar as escolas se a sociedade não entender quanto nós somos importantes naquele espaço? 

Sempre fomos contra a terceirização, não contra as pessoas terceirizadas, e sim as empresas terceirizadas. Vai acontecer com certeza com essas empresas que vão pegar as escolas. Vão terceirizar o serviço.  

O apagão docente vem de algum tempo e aqui já está presente

Tem o caso das merendeiras…

Sim, tem as merendeiras. Tem um sindicato que é das terceirizadas mas para elas é um sindicato mais patronal do que de defesa do trabalhador. Daqui a pouco os professores podem vir a ser terceirizados. O apagão docente vem de algum tempo e aqui no Rio Grande do Sul já está presente. No mundo inteiro há a questão desse apagão docente. Usar medidas paliativas, como o governo federal quer fazer – que não vejo como ruim, mas ao mesmo tempo, você tem que pensar lá na ponta. 

Como você vai valorizar esses professores para tornar a profissão mais atraente? Estamos aqui há 10 anos com perdas salariais. Cada vez as pessoas estão ganhando menos. O próprio DIEESE aponta que o salário mínimo neste ano teria que estar em R$ 7.800 quando um professor – no meu caso, com 32 anos de magistério – ganha um salário bruto é R$ 6.000 e pouco, fora os descontos. Como o governo federal quer apontar um abono, o Mais Professores, de R$ 2.100? Então, não se torna  atrativo ser professor da rede municipal ou estadual. 

E é um abono, não é algo para incorporar ao salário?

É um abono, não é uma coisa que vais incorporar no salário. E sempre fomos contrários aos penduricalhos. Mas é uma forma de sustentação também do teu salário. Só que, mais uma vez, acham uma forma paliativa. Então, isso também temos que cobrar do governo federal. Quero ver como os municípios, os estados, vão aderir a essa questão do sistema de concurso nacional. Também tem que ser cobrado. 

Agora, no Rio Grande do Sul, 60% são contratos emergenciais temporários. É também um dos motivos para a nossa mobilização são as dificuldades por causa das represálias. É um dia de salário que tu perdes. Todo mundo é pai, mãe de família e precisa dessa sustentação salarial. 


“Queremos ser bem valorizados, mas temos a responsabilidade de reter o aluno dentro do espaço da escola” / Foto: Caco Argemi /CPERS

O programa que referiste é o Mais Professores para o Brasil. Como o CPERS recebe o programa? Comentaste que (os professores) não são totalmente contrários. Quais são os pontos trazidos na proposta? 

A gente não fez ainda um debate na direção do CPERS. Temos um planejamento da direção que também tem que ouvir as demais forças políticas do CPERS. E o que tiramos? Se existe um incentivo para a diminuição do apagão docente, é louvável. É importante. Mas somos contrários a medidas paliativas, tipo abono salarial. Você cria cartões de crédito. Mais um motivo para daqui a pouco a gente estar endividada com os bancos. 

Temos um governo progressista, eleito pelos trabalhadores e trabalhadoras, mas temos que dizer com muita força ao que somos contrários. Precisamos de valorização salarial e de um plano de carreira condizente. 

Em dezembro, a Comissão de Educação, Cultura e Desporto, presidida pela deputada Sofia Cavedon, lançou a quarta edição do Observatório da Educação Pública/RS. Um dado alarmante é que o número de matrículas da rede de ensino estadual caiu em diversos níveis. No ensino médio foi de 300 mil em 2022 para 282 mil em 2023. Parece que não é só no Rio Grande do Sul mas no país inteiro. Então, não lidamos só com um apagão docente mas uma redução constante de alunos.

O valor de um Pé-de-Meia não dá para comprar celular, tênis, camiseta

Temos que analisar esses dados. Assim, na minha região, a das Missões, o que está acontecendo é a diminuição de filhos e filhas e também, em grande parte, no estado todo. Então, também há uma diminuição de alunos e alunas. E muitos do ensino médio precisam também trabalhar. 

Acho importante o ensino em tempo integral. No ano passado, visitei oito escolas. Uma delas, em Novo Hamburgo, era de tempo integral. O diretor estava preocupado que muitos alunos iam às aulas uma ou duas vezes na semana. Em outros períodos, mesmo que hoje tenha o (programa federal) Pé-de-Meia, e mais o suporte do governo do estado para manter o aluno na escola, muitos deles são retidos pelo mercado local para trabalhar.

O valor de um Pé-de-Meia, que o governo dá, não dá para comprar celular, tênis, camiseta. O consumo, hoje, é muito maior do que o tempo em que eu era estudante. É um dos fatores que dá evasão. Tem a questão do passar de ano, que o governo quer que aprove, mesmo que (o aluno) não frequente, que possa ficar em quatro disciplinas dependentes. Sou a favor daquilo que está dentro da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), que são as disciplinas dependências. Ao mesmo tempo, quero saber como vai ser feito para ter esses alunos na escola. Se tu aprovares o aluno sem nenhum tipo de conhecimento.

Queremos ser bem valorizados, mas temos a responsabilidade de reter o aluno dentro do espaço da escola. Nossos postos de trabalho também estão em jogo. Quando diminuímos turmas, diminui o horário também para quem é contratado emergencialmente porque ganha por hora-aula. O governo estadual tem que achar alguma forma para que não aconteça isso aí. É uma das cobranças que a sociedade tem que fazer dos governos, principalmente ao governo Leite.

E isso tem acarretado também o fechamento ou tentativa de fechamento de algumas escolas. Agora, aconteceu com a escola Liberato Salzano, de Viamão. Se não tivesse o número exigido de alunos, seria fechada. Quando se fecha uma escola toda aquela comunidade fica perdida… 

Quando iniciei no magistério estadual e como diretora do Núcleo de São Luís, tinha uma região lá, em 16 de Novembro – uma cidade pequena de sete mil habitantes, e que agora deve estar em quatro mil- várias escolas eram no campo. E essas escolas sempre, principalmente com o auge do Fundeb em 2007, que mudou de Fundef para Fundeb, você corria atrás dos alunos no interior. Os municípios tinham vontade de ficar com essas escolas, porque quanto mais alunos havia, maior era o aporte que o Fundeb dava. 

Quando acaba uma escola no campo, há também o êxodo rural

Agora, quando há vontade política por parte dos prefeitos e da própria sociedade local, você fecha escola. Isso é prerrogativa dos governos. Só que, no caso da escola Liberato, com toda a comunidade escolar contrária, mesmo assim você fecha de cima para baixo. Com isso não podemos concordar. 

Quando acaba uma escola no campo, há também o êxodo rural. E a gente precisa manter esses filhos e filhas, os trabalhadores da agricultura familiar, no interior. Precisamos que os professores tenham toda uma educação diferenciada para trabalhar com esses alunos. Não é a mesma da zona urbana, as mesmas formas de conteúdo dentro do currículo.


“Precisamos de valorização salarial e de um plano de carreira condizente” / Foto: Joana Berwanger

Qual é a diferenciação entre escola no campo e do campo? 

A do campo é mais voltada aos trabalhadores rurais, porque eles têm todo um trabalho… Dentro de assentamentos, do MST. Quando a gente vê que tal escola lá é do campo, tu consegues envolver os trabalhadores rurais para que eles venham, os sindicatos de trabalhadores rurais. Já participei de reuniões nacionais com as escolas do campo e no campo. A própria UFRGS tem um curso específico para as escolas do campo. Então, para você ver que lá também há uma preparação do currículo para essas escolas para poder encantar esses filhos e filhas dos trabalhadores rurais como um todo. 

A gente vê hoje com cada vez mais algumas regiões com muito mais plantações de soja do que realmente a cultura de subsistência. Então, isso também é de suma importância, por que de onde que vem a comida? Não é do agro que nós nos alimentamos, nós nos alimentamos da cultura de subsistência. Então, isso é a importância das escolas do campo. Então, essa é a diferença. 

Quem faz a educação é que tem autonomia de organização de currículo no chão da escola

Vive-se hoje uma disputa ideológica dentro das escolas. Existe esse movimento chamado Escola Sem Partido. O próprio agronegócio entra nas escolas com suas cartilhas. Sabemos que essa produtora de TV chamada Brasil Paralelo entra nas escolas com seu revisionismo histórico. Temos as fundações, como a Fundação Lemann e outras dos homens mais ricos do país, influenciando a educação… 

Quando a gente fala de dinheiro é porque há disputa realmente. Não podemos concordar com isso. Quem faz a educação é que tem autonomia de organização de currículo no chão da escola. São os educadores e educadoras. Como estou afastada há 13 anos da sala de aula, se voltasse hoje sei que pegaria uma escola diferente. Agora mesmo vocês viram a medida aí do celular em sala de aula. Há 13 anos atrás, meus alunos podiam usar em sala de aula. Mas como eu fazia para trabalhar com eles? Eu os organizava de tal forma que eles podiam fazer pesquisa no celular, fazia um trabalho conduzido com eles. Claro que as coisas mudaram totalmente. Não tinha o TikTok, não tinha Whatsapp, não tinha essas redes sociais.

Hoje, o corte do celular é algo que deveria se ter. Mas não adianta nós, professores, nos confrontarmos com o aluno e com a aluna, se não tivermos ajuda também dos pais. Como o aluno vai chegar na escola e deixar o celular? Será que o celular vai estar seguro? Onde vai ficar o iPhone desse aluno? Isso não pode ser mais uma sobrecarga para o professor e a professora. 

Quanto às empresas (que entram no espaço escolar) vamos ter que ter um trabalho importante. Como vamos cobrar do governo estadual que a educação tem que ser pública e não mercantilizada. Acho também que educadores e educadoras precisam passar por um processo de formação sindical política ou política sindical.

E quanto aos projetos pedagógicos? Além da carga horária em sala de aula, é preciso levar trabalho para casa para pensar um projeto… 

Os especialistas têm um papel importante, são os orientadores e os supervisores. De organizar o currículo, de ver onde o aluno está inserido, o projeto político-pedagógico da escola e essa organização. Às vezes, essa sobrecarga que está acontecendo de preenchimento de planilha e planilha em cima de planilha… Claro, quem conhece o aluno é o professor que está em sala de aula. Não é o supervisor. Acho que tem que restringir um pouco essas planilhas e tentar ver mais, conhecer melhor o seu professor e a sua professora no chão da escola, para entender do que ele precisa, como vai ministrar a sua aula, fazer um projeto com eles. 

A padronização do currículo não ajuda em nada. Não encanta nenhum tipo de aluno e aluna para permanecer na escola. Temos que fazer essa busca com a comunidade escolar. Nos grandes centros é uma dificuldade para inteirar com os pais e a comunidade escolar. No interior, temos muito mais facilidade para fazer essa comunicação, ouvir a comunidade escolar e produzir o projeto político-pedagógico de acordo com o lugar onde o aluno está inserido. Acredito que podemos fazer sim e pensar uma educação para o Rio Grande do Sul, uma educação de Estado e não de governo.

Vamos criar novamente a comissão dos contratos emergenciais

Como funciona a estrutura do CPERS? Porque é o segundo maior sindicato da América Latina, representa mais de 80 mil pessoas, tem uma vasta história no nosso estado e país. 

O CPERS vai completar 80 anos no ano que vem. Fizemos uma reestruturação e mudança no estatuto no ano passado, passando de 15 para 21 componentes da direção. Nosso sistema ainda é presidencialista e acredito que tem que continuar presidencialista. Tivemos que dividimos em departamentos, CPERS, e comissões. Temos departamentos que tratam de direitos humanos, de diversidade, dos aposentados, de cultura, coletivos de (combate ao) racismo, juventude… Vamos criar novamente a comissão dos contratos emergenciais. 

Hoje vemos o quanto os contratos são precarizados. Quando um contratado emergencial entra em licença saúde, tem 15 dias em que fica (amparado) pelo IPE Previdência, depois vai para o SUS e daqui a pouco, se precisa de mais tempo, ele volta e não tem mais seu posto de trabalho. Temos que criar mecanismo para reforçar também os postos de trabalho dos contratos emergenciais. Tem outras políticas que vamos discutir, as mudanças que vão vir dentro do indicador do piso. Também a comissão de comunicação, a educacional e a de formação. Serão quatro grandes comissões. Vamos colocar um coordenador em cada uma delas.

O CPERS tem 42 núcleos divididos por regiões. Como funciona o trabalho dos núcleos? 

Temos 42 sedes, são 42 núcleos. Estes núcleos têm um trabalho local. Vão fazer a visitação de base, a visita às escolas, a conversa com as coordenadorias. Nas últimas gestões, compramos 26 sedes dos 42 núcleos. Dezesseis núcleos não têm sede própria. Todos têm carro para fazer o trabalho de mobilização. A estrutura é muito grande. Por isso dizemos que é um dos maiores da América Latina. Estamos sempre correndo atrás de sócios. Nossa parte jurídica também é muito forte. A partir de março, estaremos construindo uma colônia de férias na praia para os professores e funcionários.

Vamos começar a construir uma colônia de férias para professores e funcionários

Vai ser onde? 

Em Capão Novo. Terá 91 leitos, duas ou três piscinas, uma aquecida, um salão de eventos para 400 pessoas. É um grande projeto. 

Como está o diálogo com o governo Eduardo Leite? 

Acho que, sobre esse diálogo, o governo Leite muitas vezes faz muito marketing. Precisamos sim de diálogo com ele, porque 4,3 mil funcionários de escola ficaram fora dessa reestruturação. Em março, vamos cobrar esse diálogo. Há quase 10 anos também não estão tendo nenhum tipo de reajuste salarial em seus contracheques, para você ver o quanto está sendo dura a vida também dos funcionários. 

Não adianta fazer uma reestruturação para meia dúzia e o resto ficar de fora, assim como se fez com a mudança do plano de carreira dos professores e professoras. Nessa linha, vamos cobrar mais diretamente. Acho que vai ter muita mobilização no próximo período. A sociedade tem que entender que precisa sim haver mobilização e cobrança por parte daqueles que fazem diariamente a educação nesse estado. 

(*) Esta é uma versão compactada de entrevista ao podcast De Fato.


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