Audiência Pública: ‘Não traremos Daiane de volta, mas traremos justiça’

“Que as nossas meninas tenham direito de florescer, viver dentro dos territórios. Por muito tempo tivemos nossos direitos violados. Pedimos nada mais que respeito. Vamos deixar as lágrimas na frente do fórum. Só queremos viver, que nossas meninas voltem para casa toda vez que elas saírem de casa. Que a justiça venha dia 13. A Daiane não vai voltar mais para casa, agora está na ancestralidade, mas a justiça sim”, destacou a kaingang Regina Goj Téj Emílio, integrante do GT Guarita Pela Vida, durante a audiência pública desta segunda-feira (10).

O encontro faz parte da agenda de mobilização que antecede o júri popular do feminicídio da indígena Daiane Griá Sales, que acontecerá nesta quinta-feira (13), a partir das 8h, na comarca de Coronel Bicaco, interior do Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com a Argentina. O júri popular será presidido pela juíza de Direito Ezequiela Basso Bernardi Possani, titular da Vara Judicial da Comarca de Coronel Bicaco. Estão previstos os depoimentos de 11 testemunhas, além do interrogatório do réu.

No dia 4 de agosto de 2021, o corpo da jovem foi encontrado nu e dilacerado, próximo à Terra Indígena Guarita, no município de Redentora (RS). Daiane havia sido vista com vida pela última vez na madrugada de 1º de agosto, numa festa ao ar livre, na Vila São João, local próximo à comunidade indígena do Setor Missão, pertencente à Reserva Indígena do Guarita. 

Em 1º de outubro de 2021, o Ministério Público, após investigação da Polícia Civil, denunciou o agricultor Dieison Corrêa Zandavalli, branco, 36 anos, por estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras (meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime, e feminicídio). 

Com cerca de 23 mil hectares, a Terra Indígena Guarita abriga o maior contingente de população Kaingang no RS. São aproximadamente 7,8 mil de um total de 30 mil pessoas da etnia no estado. De acordo com reportagem da Agência Brasil a região onde está localizada o território sofre com um histórico de conflitos agrários e disputa de poder.

A audiência que foi feita de forma on-line chegou a ser invadida, com conteúdos pornográficos, tendo que ser reiniciada.

Luto em luta 

A partir da fatídica morte da Daiane se levantou um corpo que reivindica justiça no nosso território, destacou Regina, ao falar do surgimento do GT Guarita Pela Vida. “Pela primeira vez conseguimos tirar um feminicídio indígena da invisibilidade e transformar também o luto em luta. Estamos aqui em memória de Daiane que foi devorada em território indígena. Quando o sangue de Daiane escorreu, sozinha naquele agosto frio, a mãe terra acordou e exigiu que pessoas lutassem por pessoas. Que os livros contem que houveram mulheres no RS que lutaram por justiça”, afirmou Regina. 

Diretora executiva do Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), Joziléia Kaingang, ressaltou que apesar de ser um momento difícil, o julgamento é importante. “A gente sabe que nossos corpos e territórios são ameaçados no nosso cotidiano. Infelizmente poucas políticas chegam às comunidades indígenas. O assassinato de Daiane é um marco, um símbolo da luta das mulheres indígenas contra a violência e o feminicídio, pela brutalidade, pela covardia, pelo grau de violência e porque tirou uma de nós. Este julgamento é muito importante, mas é parte de um processo longo, pois não trará Daiane de volta a este mundo, ela agora está na ancestralidade.” 

Durante sua intervenção Joziléia apontou que no domingo (9) outro feminicídio contra uma jovem indígena aconteceu em Dourados. “O grande desafio é ecoar o pedido de que o Estado se comprometa com a luta das mulheres indígenas. A gente pede justiça, e que essa justiça seja alcançada em outros territórios. Continuaremos nossa luta para o fim dessa violência, que destrói nossos corpos, invade nossos territórios e faz vítimas todos os dias.”

Para o secretário municipal de Assistência Social de Redentora, Ivonildo dos Santos Vieira, o caso da Daiane traz luz a outros casos de violência contra às mulheres indígenas. “Essa situação já vinha acontecendo com outras mulheres. Como no caso da irmã da Daiane, que foi violentada e jogada no rio e não teve coragem de denunciar. Há uma indígena que está desaparecida há um ano e outra que estão convivendo com violência e não tem coragem de sair de sua casa. Que essa luta transcenda o território da Guarita. Que tome outros territórios.”

Integrante da Anmiga, Nyyg Kaingang, do Paraná, frisou que o caso de Daiane é um marco para a vida das mulheres indígenas. De acordo com ela, depois do feminicídio de Daiane e do surgimento do GT Guarita pela Vida, novos grupos de mulheres indígenas focados na violência surgiram em todo o Brasil. 


“A situação é muito grave para nós mulheres indígenas. Não nos sentimos nesse lugar de segurança enquanto corpos e territórios diante de toda violência que a gente sofre” / Foto: Esquerda Diário

“Hoje cobramos o Poder Público para que tenha políticas públicas, olhe para os territórios, tenham nossos corpos protegidos. Queremos romper as amarras do colonialismo que nos aprisionam e matam, quebrar as correntes. O machismo é mais uma forma de violência que veio com os europeus há 525 anos, quando a primeira indígena foi estuprada. Hoje esse machismo está sendo reproduzido até mesmo dentro dos nossos territórios pelos nossos homens, contaminados pela cultura que nos invadiu”, denunciou Nyyg.

O vice-cacique da Terra Indígena Guarita, Joel Ribeiro de Freitas, ressaltou o trabalho do GT Guarita Pela Vida dentro e fora do território. Também falou sobre o machismo e a violência contra os corpos das mulheres indígenas. “O machismo existe em todo lugar e talvez nos nossos territórios eles sejam mais acirrados. Além do machismo também existe preconceito por sermos indígenas. Dia 13 será um marco histórico. Que seja feita a justiça. Vamos mostrar que estamos aqui e vamos resistir até o fim.” Também presente ao debate, o cacique Valdonês Joaquim também destacou a mobilização do GT. 

Momento histórico 

“É um momento de termos uma reação, de falar. Com o julgamento o silenciamento é quebrado. Estamos rompendo esse silenciamento. A situação é muito grave para nós mulheres indígenas. Não nos sentimos nesse lugar de segurança enquanto corpos e territórios diante de toda violência que a gente sofre. Temos que dar um ponto final, precisamos da união de todos. Fazer esse grito de justiça por Daiane. Vamos gritar cada vez mais”, enfatizou a indígena guarani de Santa Catarina Kerexu Yxapyry. 

Indígena Kaingang, da Terra da Guarita, Priscila Gore Emílio reforçou que o júri popular é um momento histórico para as mulheres da reserva. Para ela falar desse momento é falar de Daiane e todas as mulheres indígenas que foram arrancadas. Segundo ela, a violência em relação às mulheres indígenas não é cultural. “A nossa cultura é de cuidado, proteção. Nossas ancestrais, mães nos ensinam: cuida da tua irmã, sobrinha. A luta pela Daiane mostra que não podemos recuar. Nosso lugar é estar onde queremos estar. Que possamos falar de políticas públicas do bem viver, ouvindo a base, nossos territórios, nossas parteiras, as mulheres, anciãs.” 

A deputada federal Maria do Rosário (PT) destacou que é preciso transformar a dor em luta. E ressaltou a vulnerabilidade que existe em torno do crime. “Se trata de uma criança, mal fazendo a travessia em ser criança e ser uma menina. Se trata de uma menina indígena. Portanto as vulnerabilidades que aqui estão de quem acha que tem o poder de matar, destruir. Novas meninas, novas Daianes seguem sendo vítimas em todo o país. Não podemos aceitar a impunidade. Que o grito que não foi ouvido naquela madrugada seja ouvido no julgamento.”

Segundo a parlamentar não se pode aceitar a impunidade. “Essa menina pertence a uma comunidade, uma cultura. Mas ela pertence também a nós que estamos aqui e dissemos que não aceitamos a impunidade, e por isso fizemos leis que precisam ser cumpridas. Impunidade é autorização da continuidade dos crimes. Com a impunidade a vítima acaba sofrendo julgamento, ainda mais se ela vive em comunidades periféricas, negras, indígenas. O criminoso se valeu de uma criança, se valeu de estar sozinha. Usou de toda condição vulnerável para destruir a vida e o corpo. Queremos que se faça justiça.”

Por sua vez a deputada estadual Stela Farias (PT) afirmou que o estado do Rio Grande do Sul vive um momento dramático. “Desde o início deste ano já foram registrados 10 feminicídios. É uma tragédia que não tem fim. O feminicídio que não para de crescer mostra o grau de retrocesso que vivemos no Brasil com o surgimento da extrema direita e que chega nas nossas aldeias. Essa luta que nos traz aqui, para buscar justiça para Daiane, também nos mostra a luta por um país que respeite a vida das mulheres. É impossível seguirmos vivendo dessa forma, é preciso que nossa sociedade se altere.”

Voz a Daiane

O advogado da família de Daiane Kaingang, e assistente de acusação do Ministério Público (MPRS), Bira Teixeira, ressaltou que o papel desenvolvido pelo escritório desde o inquérito foi dar voz dentro do processo para Daiane. “Esse caso tem que ser tratado com a importância que ele precisa ser tratado. A caminhada foi demorada. Daiane foi calada naquela noite de agosto. O processo, na parte técnica, revela o quanto aquela menina lutou incansavelmente. Essa luta está nos sinais da unha, da forma como as roupas estão postas no corpo. Ela brigou o que pode, naquele momento ela estava sozinha. Ela podia ter cedido à violência, aceitado o ato da violência, mas ela não aceitou, se negou e morreu lutando. Nosso papel é traduzir isso. O réu está pronto para ser julgado e condenado, havia saliva dele no peito dela, não há como negar.”

Ele comentou que haverá sequência nas investigações para ver se houve mais pessoas envolvidas, o que pode ser revelado também no próprio júri. Emocionado, pontuou que o ambiente em que Daiane foi capturada é um ambiente de discriminação. “A adolescente não era vista como tal, como uma mulher, como uma indígena. Mas como um objeto que podia ser pego, apenas mais uma indígena. Precisamos dar visibilidade a isso. Que a gente consiga transformar toda a dor dela em força de luta.”

Para a jornalista e integrante do Levante Feminista contra o Feminicídio Télia Negrão, após três anos de atuação junto ao caso o crime não pode sair invisível. “Para nós, da Campanha Levante Feminista, este caso foi um desafio à nossa mobilização. E o julgamento, um marco, para demonstrar que a violência de gênero e o feminicídio atravessam todas as mulheres, e que são necessárias medidas e políticas específicas para as mulheres indígenas, de prevenção, proteção, cuidados. Agora estamos em busca de justiça, mas depois lutaremos pela memória, ancestralidade e reparação. É um crime muito grave com muitos impactos para quem ficou para trás.”


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