Após mais de três anos, o grito de Daiane foi finalmente ouvido

Situada na região Celeiro no Noroeste do Rio Grande do Sul, Coronel Bicaco, cidade com 8 mil habitantes, viu nas últimas 48 horas, um forte esquema policial montado no centro da cidade. A comarca do município foi o local onde aconteceu o júri popular do feminicídio da indígena Daiane Griá Sales, 14 anos. O réu, o agricultor Dieison Corrêa Zandavalli, homem branco, de 36 anos, foi condenado a 36 anos e 6 meses, sem contabilizar na sentença os 3 anos que ele já está preso desde o início das investigações, por um júri formado por quatro mulheres e três homens. A sentença foi dada pela juíza de direito Ezequiela Basso Bernardi Possani. 

A justiça pela jovem indígena kaingang Daiane Griá Sales, 14 anos, vítima de feminicídio em 2021, foi feita. Ao sair a sentença a emoção tomou conta, o choro contido da comunidade indígena desaguou. O sentimento de justiça também foi sentido pelos residentes de Coronel Bicaco, como das funcionárias da Câmara de Vereadores que estavam com lágrimas nos olhos. Assim como estavam emocionadas as promotoras.


Leitura da sentença pela juíza de direito Ezequiela Basso Bernardi Possani / Foto: Alexandre Garcia

Jaqueline Liz Staub, uma das promotoras do caso diz se sentir aliviada, principalmente por ter sido um caso representativo, muito importante para a família da vítima e para dos indígenas como um todo. “Pessoalmente o que aconteceu com a vítima me tocou. Estou aliviada de ter conseguido passar para o júri esse sentimento de que foi muito grave o que aconteceu.”


Promotora Lucia Helena de Lima Callegari / Foto: Alexandre Garcia

O advogado de acusação Bira Teixeira considera a pena exemplar, potente, muito forte. Segundo ele, este é um dia simbólico por ser um dos poucos casos, se não o primeiro, de feminicídio de mulher indígena que chega ao tribunal de júri. Fortalecendo assim a luta das mulheres contra todo processo de violência existente. 


Advogado de acusação Bira Teixeira / Foto: Alexandre Garcia

“O nó na garganta existente desde a madrugada do 21 de agosto de 2021, teve o seu julgamento. Esse é um momento especial porque nós nos comprometemos que traríamos a voz da Daiane para dentro do tribunal e que a sua voz seria ouvida. Que a voz dela não seria esquecida. É a luta de todas as mulheres, indígenas ou não, que abraçaram a causa, que lutaram tanto e não deixaram esse caso cair no esquecimento. A Daiane virou um exemplo, motivo de orgulho para todas as mulheres. Fiquei muito feliz de participar ao lado do Ministério Público de todo esse processo.”


Vice-cacique da Terra Indígena Guarita, Joel Ribeiro de Freitas / Foto: Alexandre Garcia

Durante os três dias do processo, que duraram 21 horas de júri, foram feitas oititivas com as 11 testemunhas, inquérito com silêncio parcial do réu, que respondeu somente perguntas de sua defesa e dos jurados, e debates da acusação e da defesa. Enquanto isso, do lado de fora do Fórum, indígenas da região e de outros estados, assim como representantes dos movimentos sociais, fizeram vigília com cartazes e faixas pedindo justiça. Emoção e tensão marcaram a espera até o resultado. Mas também mostras de solidariedade e apoio dos moradores da cidade. 


Jandir Griá, tio de Daiane rezando / Foto: Alexandre Garcia

A acusação foi representada em plenário pelas Promotoras de Justiça Jaquiline Liz Staub e Lúcia Helena de Lima Callegari, tendo como assistente de acusação o advogado Bira Teixeira, em nome da família de Daiane. E a defesa do réu estava a cargo de três mulheres, as advogadas Pamela Londero, Ana Caroline da Rosa Massafra e Laura Villar Piccoli.


Mãe e irmã da Daiane / Foto: Alexandre Garcia

“Por muito tempo aguardamos este resultado do júri, foram três dias muito cansativos, sem trabalhar, porque queríamos estar aqui com a Júlia, com as irmãs da Daiane para dar um apoio para que se faça justiça por uma de nós. Entrou para a história. Uma indígena recebendo o júri por feminicídio, qualificadoras todas caracterizadas. Para nós ela não volta mais, mas a justiça por ela nós vamos levar para o território, para todos os povos indígenas, porque todas as nossas vidas importam. O Brasil inteiro, que todas as meninas saibam desse espaço de tanta luta e tanta conquista. Depois de mais de 500 anos sendo explorados, hoje conseguimos provar que o corpo de uma de nós é nosso, é nosso território e nós podemos viver. Daiane não vai para casa com a mãe dela, mas a mãe dela vai sabendo que foi feita justiça pela filha dela”, manifesta a kaingang Regina Goj Téj Emílio, integrante do GT Guarita Pela Vida, emocionada ao fim do júri.


 Foto: Alexandre Garcia

Primeiro dia do júri

O julgamento começou às 8h desta quinta-feira (13), quando foi realizado o sorteio do júri e o depoimento das testemunhas. O primeiro dia foi finalizado às 21 horas com o inquérito do réu que além de fazer silêncio parcial, pediu, através da sua defesa, que não fosse fotografado ou seu rosto exposto na transmissão on-line. 

O primeiro testemunho foi do Inspetor Neves Bastos Mello, via on-line. Ele relatou que chegou ao local na parte da tarde e que perto do corpo foi encontrado rastros de um único veículo, o que acredita ser um carro pequeno de passeio. Como consta na denúncia do Ministério Público, confirmou que a pessoa que cometeu o crime seria alguém que já tivesse conhecimento da região, pois o local seria de difícil acesso e que seria preciso conhecimento para chegar. 

Na sequência foi ouvida a mãe de Daiane, Júlia Giriá, que prestou depoimento na condição de informante, com o auxílio da Roselaine Kaingang, primeira indígena no país a ser intérprete de um júri. Roselaine destacou a importância de se ter uma intérprete na vara judicial. “Sou fluente na língua kaingang e no português além de já ter trabalhado em outro oportunidade como tradutora. Meu trabalho foi muito importante para as testemunhas e para as famílias que têm muita dificuldade de comunicação. Faz parte da nossa cultura falar baixo. Foi a primeira vez que viemos. Inclusive, se tivessem pedido uma intérprete durante as investigações, durante os depoimentos das testemunhas, eu tenho certeza de que seria muito melhor. Elas tiveram muita dificuldade, se contradizendo em muitas coisas e isso mostra a importância de ter uma intérprete na vara judicial.”

Júlia relatou que viu a filha pela última vez no sábado, antes do assassinato. Comentou que ainda guarda as roupas de Daiane. Disse que ficou sabendo da morte da filha através de uma foto que foi enviada, mas que não a reconheceu, não acreditou. Comentou que ela participava de grupos de danças na comunidade, e no coral da Igreja Evangélica. Disse que há dois meses ela havia começado a sair para festas. Além da mãe, a intérprete também auxiliou as demais testemunhas kaingangs, o que não havia sido garantido no processo anterior (depoimentos à polícia).


Júlia Giriá / Foto: Juliano Verardi/Dicom-TJRS

O terceiro e mais longo depoimento foi do delegado que conduziu as investigações, Vilmar Schaefer. Seu depoimento durou cerca de duas horas, onde ele detalhou sobre o percurso da investigação. Segundo ele o trabalho foi realizado por uma força-tarefa que reuniu policiais civis da região durante 40 dias. “Todas as linhas de investigação foram consideradas, pessoalmente gerenciei tudo isso”, afirmou. Destacou que quase 100 oititivas foram realizadas.

Segundo o delegado, os álibis do acusado para a noite dos fatos eram inconsistentes. “Todos os álibis que nos trouxe foram derrubados.” Assim como provas testemunhais dando conta de que o acusado teria dado carona para Daiane. “Na medida que surge o vestígio genético dele no corpo da vítima, evidente que ele teve contato com a vítima. Não tinha como os indícios não apontarem para ele”, expôs. Afirmou que Daiane resistiu, e que era uma noite fria.


Delegado Vilmar Schaefer / Foto: Juliano Verardi/Dicom-TJRS

Enquanto acontecia o depoimento de Schaefer, um ritual kaingang pedindo justiça por Daiane foi realizado, ao fim dele uma forte pancada de chuva caiu na cidade.

Foram ouvidas as amigas, familiares de Daiane, que estiveram com ela na festa da Vila São João, último local que a jovem foi vista com vida. Entre os depoimentos, o da sua irmã Cledi, sobrevivente de violência de gênero, que confirmou que sabia que a irmã tinha se transformado em um símbolo, mas que preferia mil vezes ela viva. 


Ritual kaingang por justiça por Daiane / Foto: Juliano Verardi/Dicom-TJRS

Também depuseram uma ex-namorada do réu, um comerciante local, o agricultor Luiz Salvador, que encontrou o corpo de Daiane, e Lucas Carvalho de Quadros, amigo da jovem e que chegou a ser investigado no processo.

Luiz comentou que de início pensou que fosse um animal morto por conta das aves que rodeavam o local. Disse que encontrou o corpo às 14 horas. A casa mais perto do corpo era dele, cerca de 1 km, e que não ouviu gritos. Disse que o réu conhecia o lugar, e que não era um local de passagem. “Só quem entra nesse local é quem planta. Não é lugar de acesso.” Disse que o local à noite é de total escuridão. Por sua vez, Lucas, que havia dito durante testemunhos anteriores que havia visto Daiane entrar no carro do réu, disse no júri não se lembrar mais. 


A pedido do réu não foi permitido imagens que identificassem o mesmo / Foto: Juliano Verardi/Dicom-TJRS

Interrogatório do réu

Depois de todas as testemunhas ouvidas, o réu foi interrogado por cerca de 20 minutos. Negou desprezo pela comunidade indígena e disse aliás ter uma filha com uma indígena, mas não soube dizer o nome do “sogro”. Negou ser o autor do feminicídio. “Não tem nada que eu ficasse com medo. Não tenho participação nisso daí”, e por isso cedeu o DNA. Disse que conheceu Daiane na quinta-feira, dois dias antes dos fatos, ocasião que teria tomado uma cerveja com ela e que teriam apenas se beijado e abraçado. “Foi só isso que aconteceu.” A saliva do réu foi encontrado no seio de Daiane.

Em relação ao sábado do crime, disse que não esteve na Vila São João, local da festa, mas que estava em um acampamento numa barragem da região. “Não posso assumir uma coisa que não fiz.” Também disse que esperou quatro anos por justiça. “Perdi família, serviço, perdi tudo, para mim não sobrou nada só uma cadeia.” Confessou ser usuário de drogas, e que no dia do crime havia consumido pó. O réu disse que estudou só até a oitava série, que era pai de três meninas e um menino, dos quais não mantém contato. 


Batom da Daiane / Foto: Juliano Verardi/Dicom-TJRS

Momento de decisão 

Pela parte do réu, acompanhando o júri seu pai e um irmão, por Daiane toda uma comunidade que teve que se revezar ao longo dos dois dias, pois o espaço só comporta 20 pessoas. 

O segundo dia começou com os debates, a partir das nove da manhã, com a sustentação da acusação. A promotora de justiça Jaquiline Liz Staub apresentou o caso, com relatos de testemunhas à Polícia Civil, provas da perícia, e trechos de depoimentos do primeiro dia. O corpo da Daiane foi encontrado dilacerado da cintura para baixo. 


Comunidade indígena acompanhando o júri popular / Foto: Alexandre Garcia

Durante sua intervenção, Bira ressaltou quem era Daiane, e seu sonho de ser professora. Destacou que Daiane havia lutado. “Ela não queria ser violentada, mesmo alcoolizada, ela lutou até perder a vida pelas mãos do réu (…) Aquela voz que foi calada não poderia ficar embaixo do tapete, ‘ah foi só uma indígena’. Também citou o documento escrito por mulheres indígenas, Carta para Daiane.”

Ao se dirigir aos jurados, a promotora de justiça Lúcia Helena disse que são eles os mais importantes. “O réu não mostrou uma emoção, não derramou uma lágrima, não gritou dizendo ser inocente. Porque não é. Os senhores vão ter que tomar a decisão cada um por si. Ninguém vem aqui para julgar amigo ou inimigo, vocês vieram aqui porque são da comunidade, ninguém precisa ter formação jurídica, mas todos temos filhos, netos, sobrinhos.” 

Na sequência foi a vez da defesa. A advogada Ana ressaltou para que os jurados decidem com total imparcialidade e que na dúvida se absolva o réu. Segundo ela, as provas são inconsistentes que ligam o réu ao crime. 

A advogada Pamela disse que assumiram o caso em 2023. Salientou que o processo não tem provas suficientes para condenar o réu. “O caso dos autos são complexos.” Ela reconheceu a brutalidade do crime cometido e que o cadáver ficou para ser devorado pelos animais. “Tomara que nunca mais aconteça, mas a história que foi contada aqui tem várias falhas. Foi uma história inventada, pescadas situações para colocar o réu como autor. Estamos defendendo porque acreditamos que ele não cometeu esse crime brutal.” 


Júri Popular / Foto: Alexandre Garcia

Em sua intervenção disse que não se sabe como Daiane morreu. Pontuou que houve pressão para que o crime fosse resolvido. “Ninguém viu o Dieison com a Daiane. Esse crime não foi solucionado. Não era para Dieison estar aqui, não é justiça nenhuma.” Sobre os antecedentes do réu disse que as ocorrências policiais não geraram condenações, com exceção de uma em que foi enquadrado na Lei Maria da Penha. “Nada foi encontrado no carro. O carro visto na São João poderia ser qualquer carro. Ninguém viu ele (Dieison ) lá na festa. (…) A Daiane entraria no carro com uma pessoa estranha? O DNA é a única prova que a acusação tem.” 

Também frisou que houve uma pressão grande e que a pressão segue até agora. “Eles querem uma condenação a qualquer custo, mas não tem prova. Não há prova no processo de que Daiane teria sido estuprada. Esse crime pode ter acontecido, mas não há provas nos autos. Saliva não é sinônimo de estupro. Não se sabe de quem era o sêmen encontrado.” Refutou a alegação de crime por estupro vulnerável. “Temos um homicídio sem causa. A dúvida deve beneficiar o réu. Esse crime não foi cometido por Dieison, esse crime foi cometido por alguém que segue solto.”

“O corpo diz tudo”

Ao voltar depois do intervalo do almoço, foi a vez das réplicas, feitas pela acusação e defesa. A promotora de justiça Lúcia Helena mostrou um vídeo do policial que foi ao local onde foi avistado o corpo da Daiane. Ressaltou que a jovem estava com a blusa levantada onde estava a saliva do réu no seio da vítima. Destacou que o corpo foi encontrado sem útero e órgãos genitais. Chamou atenção de que o réu possuía uma força superior à vítima. Sobre o sêmen disse que foi encontrado na calcinha da vítima, mas que já não havia mais material suficiente para identificar de quem era. Destacou que para chegar ao local seria alguém que tivesse conhecimento prévio da região. “Sem luz, no inverno quem consegue chegar no local? A casa mais próxima fica a 1 km do local. O réu conhecia o local do fato.”

O corpo diz tudo, prosseguiu a promotora. Segundo Lúcia, lesões e manchas encontradas no corpo demonstram que a vítima tentou se defender. Também pontuou a definição de estupor encontrado na lei. Conforme pontuou há atos lascivos outros que não são penetração. “Estamos falando de um corpo do dia 1 que foi encontrado no dia 4. De acordo com a promotora é mentirosa a versão de que o réu teria encontrado a vítima apenas dois dias antes do crime. Sobre o fato da embriaguez da vítima: “Vocês acham que uma menina com 18 ml de álcool conseguiria se defender?” 

Falou que o réu, com base no relato das testemunhas teria oferecido carona para outras indígenas. Ressaltou novamente a falta de emoção do réu. “É um momento histórico de dizer que estas condutas não podem acontecer de novo.” A promotora de justiça mostrou fotos de Daiane sorrindo. “Era esse sorriso que queria trazer aqui. Mas o que tenho é isso”: pegou as roupas de Daiane e as jogou no chão.

Autos do processo traz dúvidas 

Em sua réplica Pamela alegou que não há no processo nenhuma prova de que Daiane tenha sido estrangulada. Voltou a falar que o sêmen encontrado não tem como saber a quem pertencia. “Os autos do processo nos trazem dúvidas.” Reforçou que a Daiane caminhava bem, que não estava muito embriagada e que por isso não houve estupro de vulnerável. 

Sobre o réu não ter se emocionado disse que isso é ridículo. “Ele se comoveu, o tom de voz dele se alterou. Ele não tem medo da verdade porque a verdade não incrimina ele. Como algo assim pode ter acontecido debaixo dos olhos de todo mundo, mas as pessoas não viram Dieison na vila São João.” 

Reafirmou que não há prova de estupro. Na sequência fez a refutação de cada agravamento do crime. Sobre a alegação de Dieison desprezar a população kaingang, afirmou que ele vivia na reserva, e de ter uma filha kaingang. Pontuou que o crime não se enquadraria como feminicídio. Na dúvida absolvam o réu, prosseguiu a advogada. “O DNA no seio dela não prova homicídio, estupro. Ele contou que estava com ela nos dias anteriores não sabemos quanto tempo o DNA fica ai, porque ele cederia o DNA. Não faz sentido? Quando existe dúvida, deve ter absolvição, ninguém viu ele com Daiane. Ele não cometeu esse crime.”

“Não seria justiça se não condenássemos, nesse processo, com essa qualificadora em especial. Eu tenho uma larga experiência em júri, já participei de júris muito complicados. E eu terminei este emocionada. Hoje é um marco histórico. Estamos mostrando que as vidas indígenas valem tanto quanto as outras e que as mulheres indígenas não serão mais vítimas de feminicídio sem que se tomem atitudes como a de hoje. Daiane estará presente porque ela virou um símbolo de luta contra condutas como essa”, se manifestou a promotora Lucia Helena de Lima Callegari.

* Com informações do TJRS 


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