O que os psiquiatras não te contam

Quem duvida que, com o avanço da neurociência nas últimas décadas, tornou-se possível mapear com precisão o que há de errado no cérebro de deprimidos, ansiosos e psicóticos, entre outros transtornos mentais? Trata-se de proposição disseminada em nossa época, inclusive em muitos livros e congressos psiquiátricos. Mas não é bem assim.

A psiquiatra, psicoterapeuta e neurocientista Juliana Belo Diniz não só duvida desse discurso centrado no cérebro, como acaba de lançar “O que os psiquiatras não te contam” (editora Fósforo), em que argumenta que, a despeito do desenvolvimento de métodos sofisticados de avaliação da estrutura e do funcionamento cerebral, o tratamento de transtornos mentais com medicamentos ainda é limitado e que é preciso ir além do cérebro para que não sejamos reduzidos a nossos atributos biológicos.

Para Diniz, que é doutora em psiquiatria pela Universidade de São Paulo e especialista em pesquisa clínica pela Universidade Harvard, é equivocada a ideia de psiquiatras como prescritores de medicamentos. “Enxergar pacientes como listas de sintomas que devem ser encaixados em alguma síndrome que nos indique o remédio adequado é não só raso, mas também brutal. A escuta é ferramenta de trabalho essencial no tratamento do sofrimento humano”, afirma.

Embora reconheça os limites da psiquiatria, ela enfatiza que continua pulsante sua paixão por essa especialidade médica. Em paralelo, busca tratar, em linguagem simples, como no livro e na entrevista a seguir, as questões sobre saúde mental que vêm interessando um público cada vez mais amplo.

Os psiquiatras não contam que, à revelia de toda a produção neurocientífica, não sabemos o que se passa no cérebro, nem por que os remédios às vezes funcionam. Por exemplo, é sabido, sobre a dopamina, que seu bloqueio faz com que o rato não se mexa para buscar a recompensa. Só que, como rato não fala, não temos acesso ao que a dopamina significa para ele. Supomos que a substância tenha relação com o prazer, o que provavelmente é verdade, mas seu bloqueio não necessariamente impede as pessoas de sentirem prazer. O problema é que isso é levado ao público como se bastasse mexer na dopamina para tudo se resolver, quando, na verdade, é muito mais complexo.

1. Por que a senhora refuta a afirmação de que as doenças psiquiátricas são doenças do cérebro?
Este é um bordão antigo, vem do século XIX. Mas ganhou muita repercussão com a descoberta de substâncias que atuam no cérebro e parecem reverter sintomas emocionais. É claro que, para a vida mental existir, ela precisa do cérebro. O que eu discordo é quando se diz que o cérebro está funcionando de modo errado ou que tem um defeito. Muitas vezes, os sintomas são manifestações não de um erro cerebral, mas de uma resposta ao contexto ou de um sofrimento que é inerente à existência humana. Para algumas pessoas com certos diagnósticos, vamos encontrar uma base biológica, mas, para muitas outras, que carregam inclusive o mesmo diagnóstico, não vamos encontrar.

2. A escuta é pouco valorizada na psiquiatria atual?

Não só na psiquiatria, mas na medicina como um todo. E no mundo. Uma medicina preocupada com a produtividade, com o número de atendimentos, desconsidera a pessoa que está sendo tratada. Hoje, há serviços que um dia é um médico, no outro dia, outro, como se fosse irrelevante quem está tratando. A premissa é que basta seguir o protocolo. São consultas de cinco minutos e uma pressão para marcar retornos distantes, “vejo você daqui a seis meses”… A desumanização do processo terapêutico é extremamente deletéria para a medicina como um todo. O vínculo de confiança entre o paciente e quem o trata é essencial para que ele possa confiar, arriscar e insistir no remédio mesmo quando o efeito inicial não for tão bom. A questão da escuta vai muito além da psicoterapia.

2. O último DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) passou a incluir determinantes sociais de saúde mental. Em que medida os transtornos mentais são atravessados pelo ambiente em que vivemos?

Há achados extremamente consistentes de que experiências de racismo, exclusão social, imigração forçada etc. modificam o desenvolvimento de nosso cérebro. O cérebro modificado por esses determinantes sociais não é um cérebro que funciona errado. Uma pessoa negra ter medo de ser parada em um bloqueio policial não é um sintoma de ansiedade. Pode ser, inclusive, o resultado de um cálculo bastante acertado. É perverso a psiquiatria ver isso como sintoma e usar para medicar ou até internar alguém, o que já aconteceu na história. O psiquiatra não pode cair na armadilha de patologizar o que é reação a um contexto social.

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