
Entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, a cidade de Yalta, na Crimeia, sediou um acordo que mudaria o mundo. Sob os escombros de uma guerra assombrosamente destrutiva, os líderes da União Soviética, do Reino Unido e dos EUA, definiram as zonas de influência de cada um dos blocos e reconfiguraram a nova geopolítica do planeta. A guerra, como evento de extraordinário poder, detém o privilégio de sobrepor todas as demais instâncias, mas acordo de tal vulto, como aquele sediado no Palácio de Livadia, não ocorre com frequência. A partir de então, o comércio ocidental, conjugado com uma nova arquitetura institucional de proteção a direitos e soberanias, experimentou um crescimento sem precedentes em termos de volume negociado e países envolvidos. A globalização dos mercados encontrava um terreno fértil para sua expansão. Passados quase oitenta anos, eis que, não uma guerra, mas o próprio país que mais se beneficiou do processo de globalização chuta a escada, talvez a sua própria, surpreendendo aliados e inimigos com uma proposta de desmantelamento da ordem mundial até aqui vigente.
No plano econômico, as políticas comerciais que os EUA pretendem implementar a partir de seu novo governo, tendo como objetivo declarado recuperar o protagonismo de sua indústria, tem sido recebida com grande ceticismo. Isso ocorre não apenas porque afronta a trama comercial construída em décadas, mas porque sinaliza que o mundo em desenvolvimento continuará a sofrer dos mesmos ou piores efeitos do modo pouco cooperativo com que os países desenvolvidos atuaram no período de fortalecimento da globalização, voltados para os seus próprios umbigos.
Um dos autores que tem tratado do assunto é o economista sul-coreano Ha-Joon Chang. Chang sustenta que os países desenvolvidos promovem políticas econômicas liberais para os países em desenvolvimento, mas, ironicamente, construíram sua própria riqueza por meio de estratégias protecionistas e intervencionistas que agora negam aos demais. A globalização, nessa perspectiva, foi estruturada para perpetuar a hierarquia econômica global, impedindo que os países mais pobres ascendam na cadeia de valor. Alguns países, especialmente asiáticos, cujo exemplo maior é a China, conseguiram escapar da armadilha da mão de obra barata, inovando, agregando valor e desenvolvendo suas economias.
A propósito, o vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, ao lamentar há poucos dias que países como a China não tenham permanecido como fornecedores de mão de obra barata, confirma exatamente o que Chang denuncia: o discurso da globalização como um mecanismo de crescimento compartilhado esconde a verdadeira intenção de manter os países ricos no topo. Historicamente, as potências econômicas usaram tarifas, subsídios e políticas industriais para fortalecer suas economias, mas agora impõem regras de livre mercado aos demais, impedindo-os de seguir o mesmo caminho. Essa realidade afeta diretamente o Brasil, um país que depende de sua pauta primária de exportações e diminuiu a importância de sua indústria em termos relativos ao longo dos anos.
Ao contrário de nossa postura, enquanto os EUA e outros países ocidentais pregavam a liberalização, a China aplicou um modelo de desenvolvimento baseado no forte papel do Estado, controle estratégico de setores-chave e proteção de indústrias nascente — exatamente como fizeram os países hoje desenvolvidos no passado. O que se observa agora é uma reação protecionista dos EUA, com restrições tecnológicas e comerciais que contradizem a retórica liberal que antes defendiam.
O conceito de “chutar a escada” se manifesta claramente na mudança de postura dos EUA: enquanto a globalização beneficiava sua hegemonia, era promovida como um dogma; quando passou a favorecer um concorrente emergente, as regras foram alteradas para preservar a ordem estabelecida. Isso demonstra que o verdadeiro objetivo da ordem econômica global nunca foi o desenvolvimento equitativo, mas sim a manutenção do “status quo”.
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