Quem deixou de ensinar o Joãozinho?

Estamos há algumas décadas tentando entender por que os Joãozinhos e as Mariazinhas do Brasil estão aprendendo cada vez menos. Independente da guerra ideológica já arraigada no campo da educação, deixando de lado as paixões pelos patronos, pelas agendas, pelos discursos e vieses que invadiram o debate educacional, muitos professores, de maneira genuína, tentam responder o que está acontecendo com a capacidade de aprendizagem das nossas crianças, principalmente na fase em que começam a aprender a ler e escrever.

É recente e bem atual encontrar uma resposta apontando para os prejuízos das telas no cotidiano desta geração de aprendentes. Com vastos argumentos, evidências, uma massiva campanha e a observação do modo de vida das crianças de hoje, é fácil se convencer de que a razão do fracasso do ensino é exclusiva dessa mudança de hábito provocada pelo advento das telas, que passaram a fazer parte da vida humana cada vez mais cedo. Esse assunto é urgente, é necessário, mas é uma reflexão incompleta. A jornada para encontrar uma resposta é complexa e exige uma varredura na história do ensino, sobretudo do ensino de como estamos alfabetizando nossas crianças brasileiras.

Iluminar a pedagogia com ciência, área da minha formação e pesquisa permanente, é defender a liberdade de ensinar e aprender, entendendo o processo histórico que nos trouxe até aqui, nesse contexto desastroso da competência leitora das nossas crianças, das habilidades de escrita e interpretação. Essa análise pode ser facilmente feita hoje nas escolas, observando o cotidiano real e os resultados da rotina de uma sala de aula. Ou seja, a vivência docente de cada dia.

A ideia mais abordada nas faculdades de formação de professores remonta às décadas de 60 e 70, como origem das discussões e teorias para revolucionar os processos de ensinar e aprender em alfabetização. Já quase no final do século passado, esse pensamento se tornaria majoritário na produção acadêmica, formando os docentes deste país, ano após ano, até hoje. No entanto, não somos os precursores das ideias que tentaram reformar o ensino tradicional. No final do Império, com a intenção de trazer o que havia de mais avançado nos países com elevados níveis de conhecimento, foi traduzido do inglês o que se chamou de “manual elementar para pais e professores”, que trazia uma nova direção pedagógica, contrapondo o ensino tradicional.

O erro foi que, ao animar o governo do Brasil na época com essas novas ideias, e ao incluir nelas o método global de alfabetização, este ainda não havia sido implementado nos países que apresentavam alta erudição e zero analfabetismo. Quando foi implementado, o resultado foi desastroso. No Brasil, há registros do total desconforto e da inconformidade por parte das professoras alfabetizadoras da época, que, ao utilizarem o método global, não conseguiam mais alfabetizar seus alunos.

No início do século XX, o Brasil foi salvo pelas cartilhas que conseguiram ensinar milhões de brasileiros, driblando o método global, ensinando a partir da sílaba, da letra, o código da nossa língua. A partir da cartilha da professora Sodré, outras tantas cartilhas com a mesma inspiração foram elaboradas e alfabetizaram milhões de brasileiros por décadas, salvando o Brasil do analfabetismo em massa. Em 1960, o método global foi resgatado, através da teoria das palavras geradoras, trazida pelas ideias de Paulo Freire, ocupando tempo e espaço na academia, que, por sua vez, formava os professores das salas de aula do nosso país. Na década de 90, as cartilhas foram proibidas e, além disso, severamente criticadas e abolidas das editoras, sendo colocadas no lugar de vilãs do ensino crítico que trazia consciência social.

Em suma, importamos ideias experimentais de fora no final do Império, que, quando implementadas nas escolas dos Estados Unidos, revelaram seu fracasso. Fomos salvos pelas antigas cartilhas com as quais nossos avós, pais e pais de hoje em dia foram alfabetizados — e muito bem alfabetizados. Basta observar o nível ortográfico, de vocabulário e de compreensão de texto das gerações passadas em comparação com a atual. O método, que era intuitivo e experimental nos Estados Unidos, com comprovação de ineficiência, foi retomado com uma embalagem ideológica de Freire, que ainda vemos até hoje, toda vez que se mede o nível de compreensão leitora das nossas crianças, e o nível de escrita, pontuação, construção de frases, parágrafos… Há um desastre geracional em curso. E isso não se vê apenas nos testes e nas avaliações de larga escala, mas está bem diante de nós.

Um livro de 1955, que expõe o ensino da leitura e escrita nos Estados Unidos, se tornou um marco educacional da sua época e pergunta em seu título: “Why Johnny Can’t Read?” (“Por que João não aprende a ler?”), complementando ainda: “O que você pode fazer sobre isso?” Essa seria a pergunta de João para todos nós, professores e pais. Imaginem se o João perguntasse: “Por que você não me ensina a ler, professora?”

Tudo em pedagogia é escolha. Currículo é escolha, regras são escolhas, conteúdos são escolhas. Vamos escolher o caminho da alfabetização com responsabilidade técnica e teórica, e não com paixões ideológicas. O professor precisa retomar seu protagonismo, sua autoria, seu ofício de mestre, voltar a ser ator do ensino neste país. O João não precisa de sindicatos, patronos ou doutores acadêmicos que não o conhecem de perto, que não sabem de seus sonhos e do que realmente urge em sua vida.

O que vimos na história foram sérios equívocos e o que vemos hoje é um equívoco por decisão, o que é imperdoável. Nossas crianças precisam da coragem de verdadeiros protagonistas do cotidiano das nossas escolas, que ofereçam a elas bons caminhos, que as conduzam a bons resultados, para o conhecimento de suas capacidades e talentos, e não as sentenciem a viver sem nunca sonhar.

Fabiane Vitória, pedagoga e membro fundadora do Lugar de Criança é na Escola

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