Juízes criticam fala de Melo sobre pessoas em regime de liberdade ‘contaminarem’ abrigos no RS

O núcleo gaúcho da Associação Juízas e Juízes para a Democracia (AJD) repudiou nesta segunda-feira (13), por meio de nota, a declaração do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), de que os abrigos destinados às vítimas das enchentes no estado estariam sendo “contaminados” por pessoas que estão cumprindo pena em regime aberto. Em entrevista concedida neste domingo (12), Melo atribuiu ao Judiciário a responsabilidade pela segurança pública do estado, algo que seria de competência do poder Executivo estadual, por meio dos órgãos policiais.

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Em sua fala, Melo lamentou a ausência de representantes do Poder Judiciário e da Defensoria Pública estadual em reunião em que se discutiu a questão dos abrigos. Para a associação de juristas, tal encontro buscou “implementar ações higienistas e desumanas, capitaneadas pelo Poder Executivo Municipal, em detrimento de pessoas que, mesmo ainda em cumprimento de pena, se encontram em regime de liberdade decorrente do sistema progressivo de cumprimento das penas, previsto legalmente, e que tem por escopo a reintegração das pessoas condenadas ao convívio social e familiar”.

Melo afirma ter chamado para a reunião sobre os abrigos representantes do Poder Executivo estadual, do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Defensoria Pública, mas que nenhum representante desses dois últimos órgãos compareceram ao encontro. “Houve uma insensibilidade do Judiciário e também da Defensoria, que dizem: ‘Não, porque os abrigados… Os apenados também têm que… Não pode ter preconceito [contra eles]’. Não, gente, não é questão de preconceito. Eu não posso ter 15 mil pessoas acolhidas, crianças, mulheres, homens trabalhadores e contaminar com gente que é do sistema penal. Isso é um papel da Susepe [Superintendência dos Serviços Penitenciários do RS], é um papel de polícia, é um papel do Judiciário”, declarou o prefeito.

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Em resposta, a nota de repúdio da AJD ressalta que as pessoas em cumprimento de pena em regime aberto “deveriam estar sob a constante vigilância do Estado, porém isto não ocorre por omissão do Poder Executivo Estadual, que há 12 anos não oferta vagas nas unidades prisionais para cumprimento das penas em regime semiaberto, tampouco disponibiliza as tornozeleiras eletrônicas em número suficiente para o cumprimento da pena sob monitoramento eletrônico”. 

A associação considera, também, que as pessoas em cumprimento de pena em regime aberto merecem “tratamento isonômico” em relação aos demais desabrigados, uma vez que “a pena que lhes foi imposta não lhes retira a dignidade prevista na Constituição”. 

Confira a nota na íntegra

A Associação Juízas e Juízes para a Democracia – AJD – por meio do Núcleo do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol -, vem a público, em face da declaração proferida em entrevista concedida, no dia de ontem (12), pelo Prefeito do Município de Porto Alegre, Sr. Sebastião Mello, registrar, observar, repudiar, lamentar, enfatizar e esclarecer, o que segue:

1. REGISTRAR que a Constituição Federal, Carta Magna do Estado Democrático de Direito, é clara e inequívoca ao determinar que os Poderes são independentes e harmônicos entre si. Sendo assim, não há obrigatoriedade da participação do Poder Judiciário em reuniões que, neste caso, buscam implementar ações higienistas e desumanas, capitaneadas pelo Poder Executivo Municipal, em detrimento de pessoas que, mesmo ainda em cumprimento de pena, encontram-se em regime de liberdade decorrente do sistema progressivo, previsto em lei (art. 112 da LEP), e que tem por escopo a reintegração das pessoas condenadas ao convívio social e familiar;

2. OBSERVAR que muitas dessas pessoas, ainda em cumprimento de suas penas, deveriam estar sob a constante vigilância do Estado, porém isto não ocorre por omissão do Poder Executivo Estadual, que há 12 anos não oferta vagas nas unidades prisionais para o regime semiaberto, tampouco disponibiliza as tornozeleiras eletrônicas, em número suficiente, para o cumprimento da pena mediante monitoramento eletrônico;

3. REPUDIAR a tentativa de imputar responsabilidade de casos que possam atentar contra a Segurança Pública ao Poder Judiciário e seus integrantes, quando cediço que tal responsabilidade, de acordo com a Constituição Federal, compete aos diferentes órgãos policiais, todos vinculadas ao Poder Executivo;

4. LAMENTAR a afirmação de que as pessoas que cumprem suas penas, em regime autorizado por lei e por decisão judicial, encontrando-se em situação de liberdade, com ou sem monitoramento eletrônico, sejam consideradas seres humanos indignos e, por isso, capazes de “CONTAMINAR” outras pessoas, quando em convívio comum nos abrigos oferecidos a partir da situação de catástrofe socioambiental que assola nosso Estado. Ademais disso, a palavra “contaminação” sugere que as demais pessoas abrigadas passariam a delinquir pelo mero contato com pessoas apenadas, conjectura ofensiva a todas essas pessoas em momento de extrema vulnerabilidade;

5. ENFATIZAR que a situação de catástrofe ambiental não suspende o dever e a responsabilidade do Estado de zelar pelos direitos humanos de toda e qualquer pessoa afetada, prestando-lhe assistência, incluindo aquelas em cumprimento de pena. Dessa forma, estando os apenados desalojados em decorrência das condições socioambientais adversas, merecem tratamento isonômico com os demais desabrigados, porquanto a pena imposta não lhes retira o atributo da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal;

6. ESCLARECER que tais declarações proferidas pelo Sr. Prefeito Sebastião Mello, ao invés de tranquilizarem as pessoas que estão amargando as consequências físicas, emocionais e materiais do desabrigamento (perdas de parentes e amigos, destruição das residências com perdas materiais e de valor afetivo), servem para agravar o sofrimento que já enfrentam, ao trazer mais preocupações. Nesse momento de tanta tristeza e desesperança, o que se almeja de um chefe do executivo municipal são condutas concretas – que não sejam discriminatórias e preconceituosas – em estrito cumprimento aos termos de nossa Constituição Federal, propiciando às vítimas, independentemente de suas condições pessoais, sociais e econômicas, acolhimento seguro e adequado, abstendo-se, inclusive, de desviar o foco da gravíssima situação do nosso Estado.

Por fim, eventuais omissões do Poder Público na adoção de medidas preventivas, tais como aquelas apontadas por opiniões técnicas abalizadas, veiculadas pela imprensa em relação ao sistema de contenção de cheias em Porto Alegre, deverão ser apuradas oportunamente. O momento atual reclama a efetivação, pelo Poder Público, de medidas concretas que atenuem as consequências e o sofrimento da população gaúcha, direcionando todos os esforços nesse sentido.

Porto Alegre, 13 de maio de 2024.


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