O populismo nunca dorme

A ordem liberal-globalizante, que comandou os países ocidentais nos últimos 80 anos, está enfrentando sérios problemas. Essa ordem, ao mesmo tempo em que gerou avanços notáveis no combate à pobreza e no aumento da conectividade global, também deixou muitas pessoas desamparadas e ressentidas. O populismo, sempre à espreita, encontra e aproveita hoje um terreno muito amigável para explorar os ressentimentos populares contra elites que parecem distantes ou insensíveis às preocupações do “povo”. As dificuldades enfrentadas pela Alemanha, a crise política na França e a eleição de Donald Trump nos EUA, são alguns exemplos, dentre vários outros, que referendam temores daquilo que o assalto populista possa vir a provocar e que a história tratou de registrar, muitas vezes como tragédia. É, portanto, bastante legítima a atual apreensão do mundo com a ascensão dos pendores populistas nesta última década.

Posicionando-se como porta-voz autêntica do “povo verdadeiro”, rejeitando elites liberais e instituições tradicionais como o parlamento, a mídia e até mesmo o judiciário, a retórica populista, embora conhecida em seus métodos, avança para além de personalismos, como uma força política que se alimenta do caos. Essa retórica anti-elite é fundamental para o ataque às bases institucionais do estado democrático, com o descarte das nuances políticas e promoção de soluções simplistas para problemas complexos. Ao fazerem isso, minam os pilares que sustentam o estado de direito e a democracia representativa, com o uso massivo das redes sociais para contornar os canais institucionais de comunicação, apelando para a emoção ao invés da razão.

Uma outra vertente do apelo populista está ligada ao medo, sentimento primal que acompanha o homem e que se agudiza em momentos de grandes transformações. Nesse sentido, o impacto da automação, da inteligência artificial e das mudanças climáticas é capturado pelo discurso populista, ou como negação, ou amplificação daquilo que já é uma realidade, porém em bases que extrapolam essa mesma realidade. O medo do desemprego e da perda de identidade cultural, tomados aqui como exemplos, tornam as promessas populistas ainda mais atraentes através de leituras enviesadas e inverossímeis.

A despeito dessa visão sórdida, na qual prevalece uma ideia sombria e cínica dos seres humanos, os apelos populistas encontram eco e votos, o que os torna particularmente perigosos para o futuro da democracia. Ao levarem o princípio democrático de poder em nome do povo, como uma entidade única, os populistas corroem os mecanismos democráticos, muitas vezes de maneira sutil, alegando que somente eles representam o povo. Esse aparente zelo pelo povo, princípio democrático fundamental, contudo, é tomado como sendo representado por um único partido, um único líder que deveria monopolizar o poder. Não surpreende, portanto, que, a partir desse entendimento equivocado, a mitomania seja um dos elementos que caracterizam o populismo, fruto dessa fé exagerada em “salvadores da pátria”. Tem sido, a propósito, através dessa verdadeira alquimia interpretativa, que os populistas imaginam deter o privilégio de representar o povo, sem nenhum tipo de concorrência, caminho que os levaria ao poder totalitário e ilimitado e, pasmem, sem julgarem estar ferindo nenhum princípio democrático.

Para combater essas falsas crenças que ameaçam as instituições democráticas é necessário reconhecer que a globalização não foi suficientemente inclusiva, e as desigualdades criadas ou amplificadas pelo capitalismo contemporâneo prepararam o terreno para a ascensão dos populistas. Desse modo, revitalizar a democracia e as instituições, sem ignorar os anseios legítimos que os populistas instrumentalizam e parasitam, parece ser a única solução. A democracia liberal não é inquebrável, e sua resiliência depende de enfrentar as raízes do populismo – tanto no plano social quanto no institucional. O que está em jogo não é apenas a política do presente, mas a própria sustentabilidade da ordem democrática no futuro.

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