‘A cidade só existe atualmente dentro de nós. Fora, virou um território’, aponta Flávio Kiefer

O arquiteto Flávio Kiefer propõe um modo diferente de pensar e refletir sobre a cidade. Arquiteto por profissão, ele se afasta do jargão do ofício e apela à crônica para debater os estranhos e discutíveis rumos dados a Porto Alegre nos últimos tempos. O recurso a um gênero literário reconhecido pelo tom coloquial ajuda na aproximação ao leitor. E ajuda também a expor o drama vivido pela capital gaúcha que, a cada dia, mais se desfigura.

Kiefer foi entrevistado pelo Brasil de Fato RS para falar sobre seu livro de crônicas Cidade Abstrata (Libretos Editora) durante a Feira do Livro de Porto Alegre.

Brasil de Fato RS: Arquiteto, professor, escritor, poeta, Flávio Kiefer também é cronista. Você lançou Cidade Abstrata, um livro de crônicas…

Flávio Kiefer: É o meu primeiro livro de crônicas. São crônicas, a maioria, mas não todas. Tem algumas, inclusive, antigas, publicadas em outros jornais. A maioria é de um site, o Sler, onde passei a publicar quinzenalmente já faz dois anos. Aí resolvi reunir, conversando com a editora, com a Libretos, enfim, numa forma de livro.

E por que um arquiteto escreve crônicas?

Puxa vida, acho que tenho uma paixão em paralelo pela escrita. Sempre gostei muito de escrever e ler. Escrevia mais de forma acadêmica, porque sou arquiteto e professor.

Tens livros técnicos?

Tenho outros livros, já organizei vários e muitos textos em revistas especializadas. Quanto a essa veia da crônica, alguma coisa eu tinha escrito lá nos anos 1980, em um jornal universitário, aqui e ali. Mas quando surgiu esse convite para ter uma coluna no Sler me bateu aquele medo que vem junto com a vontade de fazer.  Acabei aceitando e cada vez me sentindo mais solto, porque ali eu posso realmente publicar o que eu quiser.

E as crônicas falam da cidade. A literatura vem da vivência enquanto arquiteto, enquanto uma pessoa que pensa a cidade, não?

Exato. Quem tem paixão pela arquitetura tem que ter paixão pela cidade porque é na cidade que se faz a arquitetura. Então, libero essa minha vontade de cronista escrevendo sobre a cidade.

Na administração Melo, começou uma liberação geral. ‘O céu é o limite’

Você é uma pessoa que participa de movimentos que discutem a cidade, a questão do plano diretor. Inclusive, uma das crônicas trata sobre a forma como está sendo vendida a cidade.

A gente começa a se incomodar quando vê coisas que não estão indo na direção. De fato, sempre participei escrevendo para jornais de bairro, para movimentos, indo a manifestações, encontros na Câmara de Vereadores. Isso foi crescendo até o novo Plano Diretor, o de 1999, que chamei, na época, de criminoso, porque rompia com os parâmetros que a cidade tinha para a sua construção que eram de prédios mais baixos.

Tem toda uma paisagem que foi construída em Porto Alegre, que, a partir de 1999, começou a ser perdida. Já tinha começado um pouco antes. O Plano Diretor de 1979 foi bastante radical e segurou a liberdade que o mercado imobiliário tinha de construir na cidade. Tanto que praticamente todas as construtoras de fora de Porto Alegre deixaram de atuar aqui, porque passou a ser um mercado… – reservado não é bem a palavra mas, no fundo, foi isso que aconteceu – para pequenas e médias empresas. Não se podia fazer grandes empreendimentos. Isso, claro, desagradou muito o mercado imobiliário, e, paulatinamente, isso foi sendo modificado durante os anos de 1980 e 1990, até que, em 1999, veio esse plano de liberar edifícios de 18 pavimentos em qualquer lugar da cidade.

Foi tão drástico, criou uma revolta nos movimentos de bairro, esses a que eu pertencia, que houve uma revisão, e aí se reduziu um pouco – para 14 pavimentos no interior dos bairros – mas continuaram liberados os 18 pavimentos, nas avenidas, enfim, nos polos. E, agora, para nossa surpresa, na administração Melo, começou uma liberação geral de… (tipo) ´O céu é o limite`. No Quarto Distrito, no centro da cidade, agora na (avenida) Praia de Belas. Aí, a gente se pergunta assim: Por que? Para que?

Essas questões me levam a escrever sobre isso. Antecipando uma das respostas, Porto Alegre é uma cidade que nem tem população estável. É uma população em decréscimo. Então, por que vamos aumentar o porte dos edifícios, desfigurar a paisagem que é consolidada? Se vocês saírem a passear por aí, prestar atenção nos edifícios, fora do centro, vão ver prédios de quatro, de seis pavimentos. Essa é a nossa vivência.

Estão fazendo um prédio com 140 metros no Quarto Distrito. Não tem sentido

Os mais altos seriam aqueles ali do lado do Barrashopping?

Sim. Já são bem mais altos e, inclusive, ferem os 18 pavimentos.

Sim.

Eles têm ali, acho, que 60 metros de altura. Já não me lembro bem como foi a negociação ali de excepcionalidade para alguns edifícios. Faz já algum tempo. Aqueles da (avenida) Borges de Medeiros, ‘Trade alguma coisa’ ali na Borges com a Ipiranga. Aquilo ainda tem a ver com o projeto (da construtora) Maguefa – só os muito antigos vão lembrar disso – e ficaram em função de fundações que haviam sido executadas para edifícios daquele porte e a construtora obteve o direito de construí-los. Por isso foram feitos. Mas estamos falando de excepcionalidades. Um prédio aqui, um prédio ali, que não são esses que estou falando agora. Já estão fazendo um prédio com 140 metros (de altura) Quarto Distrito. Não tem sentido.

O que vemos em Dubai? Não vemos nada. Só vemos prédios, não vemos gente

E há os projetos para a avenida Ipiranga, onde havia o Ginásio da Brigada Militar, onde também querem construir.

Ah, sim, que acabou de ser liberado.

E, no (bairro) Menino Deus, onde está a sede da FDRH (Fundação de Desenvolvimento e Recursos Humanos), a comunidade está resistindo.

Ali (também) é um desses casos que onde havia as fundações. O Plano Diretor iria mudar e a construtora estava falida mas deu um jeito de implementar as fundações. A lei dava direito, ou dá ainda, de que, tendo as fundações, pode construir. Mas eles querem mais. E não é só uma questão de altura, tem essa implicância também da forma de se apropriar do espaço urbano, da escala humana. Quando vemos Manhattan, ou agora na Ásia, o que vemos? Vemos edifícios, não vemos as pessoas. Manhattan tem as duas coisas, porque tem o passeio, esses grandes edifícios nem garagem tem. As pessoas vão de metrô, tem uma grande circulação de pedestres. Mas Dubai? O que vemos em Dubai? Não vemos nada, só vemos prédios, não vemos gente.

A gente assistindo cenas ridículas de haver fresta em uma comporta e não saberem como fechar

E muita gente deprimida, em função disso.

Óbvio. Isso tem efeitos sociais e psicológicos evidentes. E depois tem a questão cultural, da memória, mas, hoje, não podemos deixar de falar na questão ambiental. Esses edifícios são…

Inclusive, uma das crônicas trata justamente do que vivemos em Porto Alegre. Dizes que vinham de muito tempo os problemas que ajudaram a termos a enchente na proporção que tivemos.

O caso da enchente é um descuido. É uma cidade que foi protegida, porque teve a enchente em 1941, aprendeu-se a lição, e foi feito um investimento bilionário durante décadas no sistema de proteção da cidade. Só que aí eu vou dizer que tem uma culpa da nossa, de todos. A cidade passou a não acreditar no seu sistema de proteção. As pessoas não entendiam que o muro não era só um muro e sim fazia parte de um sistema que tem 60 quilômetros. Não são três quilômetros de extensão. Então, derrubar o muro seria ignorar uma proteção muito maior.

Aí, claro, os administradores irresponsáveis – havia os responsáveis – os irresponsáveis abriram mão de cuidados. Essa história que todo mundo sabe: as casas de bombas, as comportas. Até a gente assistindo cenas ridículas de haver fresta em uma comporta e não saberem como fechar. É uma coisa inusitada. Mas espero que, para os próximos 30 ou 40 anos, a lição tenha sido aprendida e esse sistema seja, de fato, bem cuidado.

Você falava das mudanças climáticas. Me parece que esse debate passou longe das eleições…

Não. Na verdade, a gente continua vivendo como sempre viveu. Esses empreendimentos de que estamos falando, se olharmos os jornais dos anos de 1970 ou 1980, eles tinham a mesma visão da cidade. Como nós, caminhando para o fim do mundo, não paramos para pensar, ‘Opa, temos que mudar tudo? Como? Vamos planejar essa mudança? Como vai ser?’ Não.

Não mudamos nem o prefeito.

Não mudamos nem o prefeito. Mas o prefeito está aí e agora a gente tem que assumir e, quem sabe, vamos convencê-lo a mudar. Ele já mudou uma vez.

Para pior, não é?

É. Mas, sei lá, temos que lutar com a realidade que a gente tem. Não adianta ficar chorando o leite que já está derramado e foi derramado feio. A questão ambiental está aí e temos que falar nela.

Queriam botar um letreiro no Morro da Polícia, imitando aquele de Hollywood

Fico pensando que, sob a forma de crônica, é mais fácil conversar com as pessoas do que através de um livro técnico. Você pensa nisso quando escreve? Traduzir aquilo que o cidadão comum não entende, a linguagem?

Não é bem uma tradução porque não penso primeiro tecnicamente como vou fazer aquilo para que seja entendido. Tenho uma vontade de me comunicar com o público em geral. Então, escrevo para esse público o que sinto em relação às coisas que estão acontecendo. Por exemplo, queriam botar um letreiro no Morro da Polícia, imitando aquele de Hollywood. Aí eu escrevi uma crônica com o título ‘As cidades também podem ter Alzheimer’.

É uma maneira de falar sobre a importância da memória, do patrimônio, de ter uma cidade que seja uma identidade da gente, do que, daqui a pouco, estar imitando Hollywood e botando letreiros. Aliás, andamos por quase todas as cidades e sempre tem lá, em algum lugar, tem lá o ‘I Love Torres’. As pessoas tiram foto na frente daquilo. Puxa, tira foto na frente da Guarita, chega, já é suficiente. Torres tem as Guaritas para identificá-la automaticamente mas o que faz o porto-alegrão se identificar com o Porto Alegre? O que o turista quer fotografar na frente do quê?

Estão fazendo o que querem. E isso é vendido nos meios de comunicação como progresso

Porto Alegre tem um histórico na luta pelo direito à cidade, que vem lá da década de 1980, início da década de 1990, no Orçamento Participativo.  Mas está cada vez mais difícil. Você já falou da das grandes construtoras e, se vamos olhar, quem financiou a campanha do prefeito Sebastião Melo, estão lá a Melnick, a Cyrela, que estão aí tentando dominar a cidade. Como resgatar esse sentimento e esse debate do direito à cidade? Essa cidade é minha, não é do grande capital.

É complicado. Parece que as pessoas não estão preocupadas que exista um grupo de construtoras que está tendo controle político, que já tem o controle do capital, e agora tem o controle político. Estão praticamente fazendo o que querem. É isso é vendido nos meios de comunicação como progresso. Então, deixe eles fazerem o que quiserem, porque vai gerar emprego. Toda notícia de lançamento fala no valor investido e em quantos empregos vai gerar. As pessoas dizem que é bom porque, infelizmente, estão dominadas por uma ânsia de consumo e de ascensão social através do consumo e não da cultura e de outros caminhos ou da espiritualidade.

Acho que é isso que a esquerda tem que se dar conta. De todo esse empreendedorismo que invadiu as classes mais pobres, mais despossuídas. Mas ia te dizer desse plano diretor porque gosto de prestar atenção nas contradições e acho que é através delas que podemos achar caminhos, inclusive em momentos em que achamos que está tudo muito ruim. De repente, a gente consegue uma brecha para que as coisas andem. O Plano Diretor de 1979, que era muito bom, foi feito no tempo da ditadura, com um interventor, um prefeito, Guilherme Vilela, que era um keynesiano.

Havia um andar inteiro cheio de arquitetos, tinha convênio com a UFRGS, havia professores e havia um pensamento sobre a cidade patrocinado por um interventor da ditadura. Então, é complicado. Hoje é estranho que a cidade esteja um pouco adormecida, ou amortecida. O que fazer para despertá-la? Não tenho a resposta.

Podermos voltar à rua da infância, na padaria da esquina, mostrar para um filho ou neto. Isso dá um sentido de lugar

Mas precisamos pensar nessa cidade.

Tem uma das crônicas em que digo que a cidade só existe atualmente dentro de nós. Fora de nós virou um território. O que é um território? Um território é amorfo. Hoje em dia, a imagem interna que temos de uma cidade é uma série de construções, que tem um limite.

Na (região da) Campanha, a gente ainda tem essas cidades assim. Mas não sabemos onde termina Porto Alegre e começa Alvorada. O porto-alegrense não tem dimensão dos limites da sua cidade, assim como o de Alvorada também não tem, nem o de Canoas, nem o de São Leopoldo. E aí você  sobe a Serra e é uma coisa emendada na outra.

Para que não se perca essa cidade que temos dentro da gente, temos que ter ela fora da gente com alguns marcos. Então, podermos voltar à rua da infância, naquela padaria da esquina, mostrar para um filho, mostrar para um neto, isso dá uma continuidade, dá um sentido de lugar. É isso não podemos perder. É o que tento passar através desse livro de crônicas.


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