Caos, pobreza e depressão: neoliberalismo em xeque

A erosão das democracias liberais ante as múltiplas crises humanitárias, ambientais, políticas e econômicas eclodindo neste primeiro quarto de século, faz com que o cenário pós-neoliberalismo deixe de ser preocupação exclusiva de grupos étnicos e minorias ameaçadas e de ativistas sociais e climáticos para entrar definitivamente na agenda política e acadêmica do mundo ocidental.

Afinal, outro mundo é possível ou a humanidade está condenada à sucessão em cascata de guerras, genocídios, desastres climáticos e injustiças sociais porque o ser humano é essencialmente egoísta e a supremacia do ocidente, dirigido pelo mercado e redes de tecnologia, é um caminho sem volta?

Em ‘O despertar de tudo. Uma nova história para a humanidade’ (2022), livro que reúne cerca de dez anos de pesquisas, trazendo explicações sobre o desenvolvimento da humanidade diferentes daquelas que atribuem os avanços exclusivamente ao grupo social que se autodenomina “raça branca” ou “civilização ocidental”, os antropólogos David Wengrow e David Graeber afirmam ser consenso entre intelectuais, desde a crise financeira de 2008, que os níveis de desigualdade social saíram de controle e que a maioria dos problemas mundiais é resultado do abismo crescente entre “os possuidores e os despossuídos”.

Jonathan Crary, escritor e professor PHD da Universidade Columbia (EUA), em ‘Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista’ (2023), mostra que a influência das Big Techs caminha na contramão das emergências planetárias e acentua o fosso entre ricos e pobres, destroçando propositalmente formas tradicionais de coesão social – especialmente no Sul Global, onde a atuação das corporações é mais nociva – a fim de homogeneizar o pensamento e atuar “no nível da consciência”.

Estudioso sobre o ritmo ininterrupto do mundo moderno e seus efeitos na psicologia e fisiologia humanas a partir das operações de redes globais de informação e comunicação, o professor faz previsões nada otimistas. “Se for possível um futuro habitável e partilhado em nosso planeta, será um futuro off-line, desvinculado dos sistemas destruidores do mundo.”

Ao tentar fazer do ciberespaço um mercado não apenas desregulado, mas acima das leis, o proprietário da Meta e aliado de Trump, Mark Zuckerberg, reforça a tese de Crary. O fim da checagem nas publicações das plataformas do grupo (Facebook e Instagram), anunciado em 8 de janeiro, seria a imposição definitiva das Big Techs sobre governos nacionais que buscam frear a infecção digital em massa de suas populações por conteúdos que estimulam a cisão institucional, o ódio e todas as formas de intolerância. Após repercussões, a Meta informou ao governo brasileiro que manterá a checagem das publicações no país por enquanto, mas polêmica continua.

“Um mundo com uma única narrativa”

“O termo ‘desigualdade’ é uma formulação de problemas sociais apropriada a uma era de reformadores tecnocratas que a princípio pressupõem sequer existir hipótese de visar uma transformação social efetiva”, explicam Wengrow e Graeber em seu extenso trabalho de pesquisa. 

Os dois afirmam que o debate, como é conduzido hoje, não traz objeções concretas aos ordenamentos desiguais que permitem transformar a riqueza de alguns em um poder quase absoluto sobre os demais ou tornar aceitável que a “existência de muitos não apresente qualquer valor intrínseco”. 

O discurso dos técnicos que dirigem bancos centrais e o enfoque de quase totalidade da mídia tradicional do ocidente segue exatamente essa linha de imutabilidade das relações humanas: a desigualdade seria o preço de se viver em uma sociedade numerosa, complexa, urbana e tecnologicamente sofisticada.

Ailton Krenak, jornalista e ativista ambiental e dos direitos indígenas, salienta que vivemos “um mundo com uma única narrativa” e que os humanos estão “aceitando a humilhante condição de consumir a Terra”.

Ao lembrar o maior desastre ambiental do Brasil, o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, devastando o rio (Rio Doce) que alimenta seu povo, em Minas Gerais, com o despejo de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, Krenak faz um alerta:

“No tal ‘capitaloceno’ que estamos experimentando não restará nenhum lugar da Terra que não seja como o corpo desse rio, assolado pela lama. Ela alcançará todos os recantos do planeta, assim como os polímeros e os microplásticos alcançam a barriga de cada peixe no oceano.”

Mercado dita padrões morais

O Green European Journal, principal publicação de ecologia política da Europa, no final do ano passado comparou edições recentes dos livros publicados por dois proeminentes congressistas dos EUA e Europa, nos quais ambos expõem as consequências deletérias do neoliberalismo em seus países e apontam a urgência de mudanças profundas na governança mundial. Os dois destacam que a dominação corporativa deixou a sociedade moralmente vazia, com as pessoas cada vez mais alienadas umas das outras. 

Em ‘Change Everything’ (Mude tudo), Natalie Bennett, ex-líder do Partido Verde Britânico, diz que o neoliberalismo estimula o individualismo, corrói a coesão social, promove a destruição ambiental em larga escala e a concentração da riqueza nas mãos de uma minoria. Bennett propõe uma sociedade pós-capitalista centrada na sustentabilidade, em que a governança seja liderada pelas comunidades locais, com mudança radical no modelo de crescimento capitalista.

O senador estadunidense Bernie Sanders também expõe as contradições profundas do modelo neoliberal, mas direciona suas críticas às relações de classe. No livro ‘It’s Okay to Be Angry About Capitalism’ (Não há problema em ficar irritado com o capitalismo), Sanders questiona o controle que uma pequena elite de bilionários e corporações exerce sobre a sociedade dos EUA, não apenas controlando a riqueza, mas moldando a política, influenciando a mídia e ditando políticas que prejudicam os trabalhadores.

“Em vez de revolução, depressão!”

O comportamento percebido pelos dois experientes políticos como a nova ordem moral desprovida de alteridade, nas duas sociedades que dividem o topo do desenvolvimento econômico ocidental, talvez não seja apenas consequência de um modelo no qual o fator humano tem pouca ou nenhuma relevância. 

Para o professor, filósofo e escritor brasileiro Vladimir Safatle, a questão é anterior, de quando valores morais foram incorporados à economia para explicar a “racionalidade” dos processos de intervenção social que retiravam direitos coletivos para favorecer corporações.

Na obra ‘Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico’ (2021), Safatle analisa o uso cada vez mais frequente do termo “austeridade” por autoridades monetárias para justificar políticas de combates a crises econômicas e inibir argumentos contrários. 

“A nomeação de tais políticas como ‘austeridade’ explicitava como valores morais eram mobilizados para justificar o processo de intervenção social e econômica”, assinala. Ao criticar a austeridade, “um termo vindo da filosofia moral”, a pessoa não seria reconhecida como “sujeito moral autônomo e responsável”.

No campo da psicologia, o professor e escritor teuto-coreano Byung-Chul Han afirma, no livro Sociedade Paliativa (2021), que “o dispositivo de felicidade neoliberal” nos distrai do sistema de dominação, fazendo com que cada um se ocupe apenas consigo mesmo e fique isolado com seus medos e incertezas, responsabilizando apenas a si próprio pelos fracassos sem questionar estruturas sociais injustas. 

E como o germe da revolução é a dor sentida em comum, “em vez de revolução, depressão!”, conclui Han.

* Marcelo Leal é jornalista.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.