Mitigar, adaptar ou enfrentar as mudanças climáticas? Um debate a partir das proposições de La Via Campesina

O debate sobre o avanço das mudanças climáticas vem ganhando notoriedade internacional nas últimas décadas, sobretudo pela frequência e intensidade cada vez maior dos eventos climáticos extremos no mundo. Estes eventos extremos se manifestam de diferentes maneiras entre os países e suas regiões, tendo em vista as especificidades de cada espaço em relação à dinâmica dos fatores e elementos do clima, potencializando fenômenos climáticos já incidentes (como a intensidade de ondas de calor e períodos de estiagem) ou modificando sua dinâmica, criando novas impactos (como fortes chuvas, tempestades e inundações).

Segundo o sexto Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), as atividades humanas, principalmente por meio de emissões de gases de efeito estufa (GEE), impulsionam inequivocamente as mudanças climáticas e o aquecimento global, com a temperatura da superfície global atingindo 1,1°C acima de 1850-1900 entre 2011-2020. Dados mais atuais são: I) disponibilizado pelo serviço climatológico europeu Copernicus, afirmando que em 2024 vivenciamos o possível ano mais quente da história, ultrapassando a marca dos 1,5°C acima da temperatura do período pré-industrial (Copernicus Climate Change Service, 2024); e II) o mês de janeiro de 2025 foi o mais quente da série histórica, com temperatura média do ar na superfície ultrapassando 13ºC em janeiro — 1,75ºC acima dos níveis pré-industriais (1850-1900).

Estes dados são preocupantes, tendo em vista que um dos objetivos do Acordo de Paris (firmado em 2015 na 21° Conferência das Partes – COP) seria manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais e ampliar esforços para limitar o aumento a 1,5°C nos próximos anos, já que essa temperatura ocasionaria a intensificação dos eventos extremos no planeta. Atualmente, os impactos dessa crise se fazem presentes, atingindo e modificando a vida de milhões de sujeitos do campo, cidades, florestas e águas em diferentes partes do mundo de forma cada vez mais acentuada, criando novos desafios ao pleno desenvolvimento de suas atividades e a qualidade de vida. Como reconhece o AR6 do IPCC: “Comunidades vulneráveis que menos contribuíram historicamente para a mudança atual do clima são afetadas de forma desproporcional”.

Ademais, desde o AR5 já temos ideia de que vulnerabilidade significa o grau de suscetibilidade dos territórios aos eventos climáticos extremos. No caso do Brasil, um país de escala continental e extremamente diverso do ponto de vista ambiental, social, político, econômico e cultural, há ainda mais preocupações sobre os impactos das mudanças climáticas. Com especial atenção às comunidades mais vulneráveis, como territórios de reforma agrária e de pequenos agricultores, comunidades indígenas e quilombolas, periferias urbanas e populações das águas. Em 2024, o povo brasileiro vivenciou inúmeras manifestações dos impactos da crise climática. Por exemplo, as enchentes na região Sul, com ênfase ao estado do Rio Grande do Sul, e as ondas de calor e acentuado período de estiagem que castigou as comunidades na região Sudeste e Centro-oeste são parte do mesmo processo. Além disso, a intensificação da seca e do calor nas regiões do Norte e Nordeste foram também evidências indissociáveis do avanço das mudanças climáticas no Brasil.

Logo, as mudanças climáticas são, mais do que nunca, uma preocupação do presente e do futuro que permeia todas as dimensões e escalas da vida, fazendo-se presente e impactando de maneira desigual as comunidades mais vulneráveis a ela em diferentes partes do planeta. Torna-se mais urgente do nunca a construção de estratégias políticas concretas e ambiciosas e uma governança internacional comprometida com a solução da crise climática, no entanto, infelizmente não temos observado essa realidade. Em 2024, a COP29, realizada em Baku, no Azerbaijão, foi finalizada com um acordo de financiamento climático (por parte dos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento, como o Brasil, Índia, Bolívia, Peru, etc…) considerado por muitos como frustrante, sendo conhecida como a “COP do Fracasso”.

O texto final da COP29 é repleto de polêmicas pois: I) não reconhece os países desenvolvidos como os responsáveis históricos pela crise climática atual, os colocando como “protagonistas” ou na “dianteira” dos esforços de financiamentos globais para mitigação das emissões de GEE; e II) exige dos países em desenvolvimento para focar seus recursos na mitigação dos GEE.

A COP30 será realizada no Brasil, em Belém (PA), contraditoriamente na região Norte, que vem sofrendo pelo intenso processo conhecido como Mudança de Uso da Terra (MUT), na qual há o avanço do desmatamento das florestas, abrindo novas fronteiras especialmente para pastagens e pecuária. É importante ressaltar que segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, a MUT foi a principal responsável pelas emissões no Brasil entre 1990 a 2022, o “pré-porteira” das atividades do setor do agronegócio.

Com os avanços de nossos estudos, temos compreendido cada vez mais a necessidade da mudança de perspectiva (e da vontade) por parte da política climática internacional, retirando o enfoque sobre o discurso de “mitigação” e “adaptação” e pautando na discussão o “enfrentamento”. O enfrentamento às mudanças climáticas é uma proposta que está sendo construída no âmbito da La Via Campesina (LVC), um movimento internacional de camponeses que reúne mais de 200 milhões de sujeitos, distribuídos em 80 países e organizados em mais de 180 movimentos camponeses locais e nacionais, lutando pela soberania alimentar, agroecologia, justiça climática, controle das sementes, valorização dos conhecimentos e tecnologias tradicionais e pela preservação da natureza. No Brasil, entre os representantes da LVC, temos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).

A proposição do enfrentamento às mudanças climáticas da LVC é fundamentada na perspectiva da “Justiça Climática”, ou seja, de descentralizar a tomada de decisões sobre as estratégias de solução dos países desenvolvidos e as corporações transnacionais, principais responsáveis pelo avanço da crise climática. Além disso, compreendo que enfrentar as mudanças climáticas não envolve somente as alterações atmosféricas, mas também os sujeitos, instituições, corporações e todo o sistema que intensifica as mudanças climáticas, numa conflitualidade territorial material e imaterial. Segundo a LVC, os territórios dos campos, cidades, florestas e águas e os países em desenvolvimento, que são os mais impactados pelas mudanças climáticas, devem ter lugar de destaque na tomada de decisão e na construção da agenda política de superação, com o traçar de estratégias concretas de financiamento climático e de, principalmente, adaptação dos territórios.

No espaço agrário, algumas sugestões exitosas de enfrentamento à crise climática da LVC, são: recuperar as matas e florestas; ampla distribuição de terras com políticas de reforma agrária; valorização dos camponeses, agricultores e demais comunidades tradicionais; incentivo a agroecologia como modo de vida e prática de produção de alimentos; investimento em mercados locais ou regionais; construção de bancos de sementes comunitários com espécies agrícolas adaptadas às condições edafoclimáticas (solo e clima) da realidade local; e a descontaminação dos rios. Estes são exemplos que têm mostrado resultados positivos em diversos países do mundo, como evidencia a experiência da LVC. No entanto, a diversidade de contexto e espaços necessitam de adaptações e outras formulações, como no caso específico do contexto urbano, das florestas e das águas.

Estas são somente algumas sugestões da LVC específicas para o campo, mas já demonstram concretude e resultados em diversas partes do mundo, sobretudo na Ásia, África e América Latina e Caribe, evidenciando que há alternativas, o que falta é vontade política das instituições internacionais. Há uma ampla variedade de pesquisas que evidenciam tais fatos, como as conduzidas por Miguel Altieri, Clara I. Nicholls, Peter Rosset, Omar Felipe Giraldo, Vandana Shiva, etc. No Brasil, temos a proposição do III Plano Nacional de Reforma Agrária (III PNRA) que leva em consideração este conjunto de conhecimentos e proposições da LVC da relação entre agroecologia, enfrentamento, reflorestamento, mudanças climáticas e valorização dos conhecimentos e saberes tradicionais, evidenciando seu caráter de política emancipado e socioterritorial.

Por fim, temos a nossa experiência no território do assentamento Rodeio, localizado em Presidente Bernardes, região do Pontal do Paranapanema, extremo oeste de São Paulo. Neste assentamento, os pesquisadores da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp) membros do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), do Interações na Superfície Terrestre, Água e Atmosfera (Gaia) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob coordenação do Prof. Dr. Bernardo Mançano Fernandes, estão construindo em conjunto mobilizações com comunidade, com a perspectiva fortalecer suas experiências agroecológicas, com base na formação política e técnica dos sujeitos, acompanhamento da produção e planejamento de atividades de recuperação ambiental no território, reconstituindo as espécies frutíferas e nativas e fortalecendo as práticas de cobertura de solo.

Além da iniciativa do Pontal do Paranapanema, temos uma experiência de mesma natureza acontecendo com comunidades tradicionais no município de Peruíbe, litoral do estado de São Paulo, sob coordenação do Prof. Dr. Davis Sansolo, um pesquisador também associado à Unesp. Ambos os territórios do estudo são parte do projeto de cooperação internacional “Agroecological Transitions for Climate Adaptation and Mitigation – ATCAM”, reunindo pesquisadores e experiência de transição agroecológica no Brasil, Índia, Canadá e Alemanha.

* Licenciado e bacharel em Geografia. Atualmente é mestrando em Geografia (FCT/UNnesp) com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). Pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), da Rede Brasileira de Pesquisas das Lutas por Espaços e Territórios (Rede Dataluta) e do projeto Agroecological Transitions for Climate Adaptation and Mitigation (ATCAM).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


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