Quando começa o fim da picada? Governo Melo e os atentados à educação pública em Porto Alegre

Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele.

Paulo Freire – Pedagogia da Autonomia[5].

Nesses tempos difíceis, no qual a salvaguarda de democracia, ainda que liberal burguesa, tornou-se uma obrigação imperiosa a todas as pessoas de bom senso e com algum lastro de conhecimento sistematizado, é paradoxal que tenhamos na capital das(os) gaúchas(os) um prefeito reeleito – negacionista climático, neoliberal, alinhado ao bolsonarismo e cada vez mais identificado com as pautas da extrema-direita — e uma Câmara de Vereadores com 35 representantes, majoritariamente alinhada ao seu projeto, que impõem à cidadania medidas cada vez mais restritivas à própria democracia, que assegurou o próprio processo eleitoral e seus mandatos; ainda que se reconheça a resistência à sanha autoritária, pela aguerrida bancada de oposição, que conta com 12 vereadoras(es) combativas(os) e comprometidas(os) com as lutas populares.

Sebastião Melo (MDB) foi reeleito prefeito de Porto Alegre, mas como? Importa levantarmos algumas hipóteses: a abstenção contribuiu. E o financiamento da campanha? O setor empresarial que foi (e continuará sendo) prestigiadíssimo na gestão municipal investiu quanto na reeleição de Melo? Fortalecido, tomou posse no dia primeiro de janeiro, e fez um lamentável discurso onde afirmou como liberdade de expressão a defesa da ditadura empresarial-militar (1964-1985), liberdade esta que sabemos não pode ser confundida com defesa de ditaduras que ferem os direitos humanos, portanto, um absurdo! Nesse pronunciamento, Melo sinalizou a linha político-ideológica, cada vez mais próxima da extrema-direita, das ações e projetos a serem desenvolvidos nos próximos anos diante do Paço Municipal. A Educação será uma das áreas centrais na agenda (ultra)neoliberal aprofundando o autoritarismo e o privatismo em continuação na atual administração municipal. Nesse sentido, fica evidente a quem serve e servirá o chapéu do prefeito Melo.

Por que silenciar a vida na escola?

A cidade de Porto Alegre já foi referência internacional da Educação, desde as práticas no chão da escola, que vivenciaram profunda reestruturação curricular, de caráter inclusiva e progressista até os potentes Seminários Nacionais e Internacionais que, em parceria, com a UFRGS, fomentaram processos formativos riquíssimos. Referência, também, na democracia, na participação popular com o projeto da Escola Cidadã (1989 a 2004), na qual se destacava a concepção e os mecanismos de avaliação processual e emancipatória, de caráter profundamente inclusivo. Importa destacar, ainda, o investimento na Educação de Jovens e Adultos (EJA) – tanto na alfabetização (MOVA) quanto na continuidade da escolarização (SEJA). De certo, como qualquer projeto político, as propostas assinaladas não estão isentas de limites e da crítica, mas representaram avanços importantes. O que veio depois tem acentuado retrocessos! A gestão atual, recém iniciada, ataca as eleições diretas das direções das escolas, silencia diante da aprovação, pela Câmara de Vereadores, da Lei da Mordaça e avança na precarização das condições de trabalho das(os) educadoras(es). Pra que(m) serve(em) esses ataques à gestão democrática, transparência, impessoalidade e eficiência no serviço público?

Importante lembrar que a Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME/POA) desde 1985 pactuou eleição direta, com a participação de toda comunidade escolar (mães, pais, trabalhadoras(es), estudantes), para o cargo de direções de escolas. Há 40 anos, tem-se consolidado como exercício democrático e educativo praticado nas escolas, com pleno apoio das comunidades envolvidas. A preocupação do prefeito é o “alinhamento” político-ideológico das direções com o governo municipal, silenciando as direções de possíveis denúncias e críticas. Fato que ocorreu na gestão anterior do prefeito Melo onde houve a troca de quatro secretários de educação por indícios de corrupção na SMED, alguns apontados pelas direções de escolas que agiram de acordo com os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, zelando, assim, pelo bom uso dos recursos públicos e proporcionando a eficiência no atendimento à população da cidade. Melo, através da liminar na Justiça, de forma monocrática e autoritária fere a democracia na escolha das direções de escolas, retrocede conquistas importantes na gestão democrática na RME/POA. 

Porto Alegre ainda sofre com a devastação deixada pela crise socioambiental que segue com suas marcas em cada vida afetada, nos mais diversos bairros de nossa capital. As escolas, muitas ainda não recuperadas, sentem o resultado do descaso e da desvalorização estampada nos índices do IDEB, consequência direta do não investimento, das aquisições de materiais sem demanda real das escolas, das arquiteturas abandonadas, da ausência de formação continuada para a RME/POA, pela precarização das carreiras, com mais de 30% de defasagem salarial das(os) trabalhadoras(es) em educação, além da permanência da política de contratação temporária em detrimento da realização de concursos públicos. 

O atual prefeito de Porto Alegre aplicou na RME/POA em 2023, somente 16,29% do orçamento, oque, nem de longe, atende o percentual previsto em lei, pois a Constituição Federal do nosso País determina a aplicação de, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos em manutenção e desenvolvimento do ensino. Terminamos em 2024, com mais de 10 mil crianças sem vaga na educação infantil, um verdadeiro crime contra a nossa infância, situação que fere os direitos das crianças e das mulheres que necessitam trabalhar e não têm um espaço adequado para seus filhos(as).

Uma política educacional precisa estar pautada na garantia de direito à Educação, considerando acesso, permanência e conclusão com sucesso dos sujeitos nos espaços escolares que ofertam o pertencimento e a construção dos processos de aprendizagem oferecendo equidade, ou seja, a oferta do que cada pessoa necessita para efetivar a sua aprendizagem. A escola deve ser um espaço livre de ideias, questionamentos, diálogos, criticidade, debates e construção do conhecimento. O tema dos direitos humanos, as políticas antirracistas, anticapacitistas, antilgbtfóbicas, antixenófobas, antimisóginas e feministas devem estar na vida da escola. Isso é conteúdo de formação, isso é trabalhar com uma perspectiva crítica e libertadora. O silenciamento e as práticas de assédio moral às educadoras e aos educadores definem uma política que a extrema-direita representa. A Lei da Mordaça é justamente o que ela condena. É partidarizar, pelo conservadorismo, a escola! Silenciar a liberdade no processo de ensinar-aprender, controlar a diversidade e estabelecer o medo da livre manifestação do conhecimento, na contramão da educação como prática de liberdade pela qual lutamos, ou seja, uma educação que não tema “o debate, a análise da realidade, que não fuja da discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”[6].

Sem a garantia de políticas públicas de Estado ou, enquanto avançarem as parcerias público-privadas (ppps) e terceirizações, que tornam o serviço público um balcão de negócios privados, a escola pública não servirá aos interesses das periferias urbanas e rurais, apenas à lógica empresarial-capitalista. É imprescindível armar teoricamente chamando a categoria municipária e a comunidade escolar à luta e à ocupação do espaço público como um princípio educativo da classe trabalhadora, pois, como lembra Paulo Freire[7], se o poder econômico e político dos poderosos desaloja os fracos dos mínimos espaços de sobrevivência, não é porque assim deva ser, é necessária uma recusa do fatalismo, somos seres da transformação e não da adaptação.   

O que virá pela frente?

Além da perda substantiva da experiência de participação direta da comunidade escolar na escolha dos projetos de gestão das escolas, e a interferência político-partidária do Prefeito e dos seus aliados – o que por si só implica no empobrecimento da democracia, da perda da autonomia e a volta ao autoritarismo que marcou a ditadura empresarial-militar – a profusão de estudos e pesquisas acadêmicas em escala nacional, além dos muitos registros e denúncias produzidas pelo associativismo e o sindicalismo docente, permitem que possamos projetar o que se avizinha, se seguir esse compasso imposto em Porto Alegre.

Pressão/estresse permanentes e rígido controle ideológico e burocrático do trabalho docente, restrição da criatividade, de projetos inovadores e da autonomia nas escolas, levando a profundo adoecimento físico e emocional e inclusive ao crescente abandono da profissão, são alguns dos efeitos percebidos nas redes públicas que seguiram o modelo neoliberalizante gerencialista de pautar as políticas educacionais exclusivamente preocupadas com indicadores técnicos de desempenho de estudantes de alguns anos (e somente em matemática e português), com provas padronizadas, ranqueamento, e somente focados em testes objetivos.

Instituir “gerentes” de confiança, amordaçar educadoras(es) e transformá-las(os) em implementadores de aulas elaboradas por fundações privadas é o sonho dourado dos ideólogos de direita e dos mercadores ávidos por lucros a saquear os cofres públicos. Gestores preocupados em tão somente maquiar dados de desempenho e treinar estudantes para a obediência, repetem a máxima que marcou nossa independência política formal: foi só/tem sido somente “pra inglês ver”. Eis a verdade que se descortina.  

É preciso impedir a barbárie

É tarefa urgentíssima a mobilização da cidadania ativa para a defesa da democracia substantiva na cidade e de um modelo de educação que já foi referência além-fronteiras pela sua excelência. O que está em jogo não se restringe ao interesse de docentes da rede pública ou da comunidade escolar diretamente envolvida. É a própria bifurcação de um caminho, o fim da picada, que o Prefeito Melo e seus aliados no Parlamento querem nos levar: um abismo no qual sucumbe o direito à educação de qualidade, gratuita, autônoma, socialmente referenciada, plural, democrática e de caráter emancipatória.   

Referências bibliográficas:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 126.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 97.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2000, p. 23.

* César Rolim é Professor da RME/POA, TAE na UFRGS e diretor do SIMPA.

** Laura Fonseca é Professora da Faculdade de Educação – UFRGS.

*** Liliane Giordani é Professora da Faculdade de Educação – UFRGS.

**** Marco Mello é Historiador e professor aposentado da RME/POA.

***** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


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