A burguesia fede

A burguesia fede. Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia. (Burguesia, Cazuza, 1989)

Da janela do ônibus a visão da Estrada do Mar é assustadora; meus olhos filmam um documentário sobre a dizimação ambiental da região. Outdoors idílicos e cafonas anunciam o paraíso para os “escolhidos”. Uns colados aos outros, cada conglomerado imobiliário disputa qual oferecerá o lago maior, o melhor clube privé e a certeza de estar longe do resto da humanidade. 

Talvez essa certeza de distância das gentes comuns e seus cotidianos à beira mar estejam na raiz da ideia genial de exportar os excrementos das classes altas para a bacia do Rio Tramandaí. É isso! Defeca-se ali no ambiente glamouroso, com direito a campos de golfe e hospital particular (eu vi na estrada!) e os dejetos vão parar em  “apenas” 18 municípios, onde milhares de trabalhadores, pescadores, quilombolas, comunidades indígenas, animais e plantas vivem. E o mar? Para que o mar se tem seus lagos com ondas, ora bolas! 

Ironias à parte, essa é a essência da proposta da Aegea/Corsan e construtoras de condomínios de luxo de Xangri-lá e região. Assim que foi anunciado esse projeto devastador, as comunidades locais já se organizaram, criaram um Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte (MOV) que tem forçado liminares e audiências públicas – como a do último dia 10 de fevereiro, que reuniu mais de 500 pessoas em Tramandaí. 

Santuário ambiental e social seriamente ameaçado

De origem tupi-guarani, o nome do rio – Tramandaí – carrega em sua sinuosidade histórias dos povos indígenas, quilombolas e mestiços que aqui povoaram muito antes dos invasores europeus. Esse manancial de sabedorias ancestrais se expressou nas falas das lideranças locais na audiência do dia 10. Há tanta coisa para se aprender… Hoje vi um vídeo lindo aqui da região que mostra um tipo especial de cooperação dos botos com os humanos – chamada de pesca cooperativa e dizem que muito rara – em que eles empurram os peixes para que os pescadores os colham em suas redes. 

Sobre as dimensões da bacia, de acordo com o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, a bacia do rio Tramandaí está incluída na região hidrográfica das bacias litorâneas, abrangendo uma área de 2.700 km, cuja faixa costeira é de aproximadamente 115 km. Se estende desde as nascentes dos rios Maquiné e Forquilhas até o norte da lagoa Itapeva e o sul da lagoa Cerquinha. A riquíssima e frágil biodiversidade da região, em que rios, lagoas e lagos vão ali na frente se encontrar com o mar estão ameaçadas por um projeto ecocida que pode transformar regiões inteiras – cujas populações vivem da pesca e do turismo – em local insalubre e envenenado por detritos tóxicos.  

Os argumentos da Aegea/Corsan e direção da Fepam são frágeis. Afirmam que cerca de 95% dos detritos estarão tratados ao descerem pela bacia, mas a ausência de qualquer estudo e relatório sobre impacto ambiental – EIA/Rima – denunciam as irregularidades apontadas pela ação cível pública dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, em andamento. Já segundo pesquisadores do Ceclimar/UFRGS (Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos), mesmo que o percentual estivesse certo, há uma série de substâncias não removíveis no processo de tratamento – produtos farmacêuticos, medicamentos, pesticidas, micro-plásticos, metais pesados – que poderão estar contidos nesse esgoto trazendo danos irreversíveis à biodiversidade da região.

Novo Marco Legal de Saneamento e privatização da Corsan: O ovo da serpente

Aprovado no Congresso e Senado em 2020, o PL 4162/2019, que determinou o Novo Marco Legal de Saneamento, abriu as porteiras para o processo generalizado de transformação da água e tratamento de esgoto em mercadoria. A pilhagem – prática típica no Antigo Sistema Colonial dos séculos XVI ao XIX – recebe trajes contemporâneos para o capital recolonizar toda nossa infraestrutura.  

Aqui no RS o ultramegahiper neoliberal governador Eduardo Leite (PSDB) correu para garantir seu status de corsário de empreiteiras e afins e – junto com a abominável maioria da Assembleia Legislativa do RS – emplacou a lei 211/2021 que autorizou a desestatização da Corsan. Estava dada a largada para a corrida do ouro líquido. A venda da Corsan – ocorrida em dezembro de 2022 – deverá entrar para a história como uma das entregas mais escandalosas do patrimônio público, dada a quantidade de irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas do Estado/RS. Infelizmente, a aposta na judicialização e negociações na superestrutura, criando ilusões de que seria impedida a compra ou revertida a venda, redundou numa derrota histórica para trabalhadores da estatal e população. 

Somente a mobilização poderá reverter o crime ambiental na bacia do rio Tramandaí.

O projeto de lançamento de efluentes no rio Tramandaí é simbólico; um marcador histórico do que se transformou a Corsan privatizada e a serviço das grandes empreiteiras. Mas é possível derrotar esse projeto aprendendo com os erros do passado. As comunidades atingidas estão apontando os caminhos. São elas que fazem com que parlamentares e imprensa se obriguem a dar a visibilidade necessária na denúncia desse escândalo. 

Por outro lado, o acerto da proposta de paralisação total do projeto e devida investigação dos parâmetros ambientais também requer que se avance para uma questão crucial nesse período de pilhagem do patrimônio público – rever as concessões e privatizações é tarefa urgente e necessária. Nesse sentido é lamentável ver o governo Lula refém do grande capital e seus fantoches no Congresso e Senado.  

Estou perto do mar; vejo aqui e ali pescadores chegando com suas redes e varas de pesca. Como Cazuza anunciou em sua canção-manifesto: a burguesia fede. E muito! 

* Professora de História, da coordenação do projeto PoAncestral.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


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