Entenda por que o Papa Francisco ordenou transparência sobre seu estado de saúde

O boletim médico transmitia uma mensagem tranquilizadora: o Papa respirava bem e havia se alimentado, comendo 10 biscoitos no café da manhã. O relato daquele comunicado divulgado pelo Vaticano em 25 de fevereiro de 2005, contudo, não era possível, uma vez que João Paulo II, Pontífice da Igreja Católica naquele momento, tinha passado por uma traqueostomia no dia anterior.

A internação do Papa Francisco, de 88 anos, no Hospital Gemelli, em Roma — o mesmo onde João Paulo II ficou internado e veio a falecer cerca de um mês depois da mencionada cirurgia —, colocou a imprensa internacional em uma cobertura segmentada que depende em grande parte dos boletins de saúde divulgados pela Santa Sé. Embora não sejam historicamente reconhecidos como documentos propriamente confiáveis, analistas apontam que, durante a estada do jesuíta argentino no hospital, há uma transparência nunca antes vista quanto às atualizações de saúde do líder da Igreja Católica.

Desde que Francisco foi internado, em 14 de fevereiro, o Vaticano tem divulgado uma média de dois boletins diários sobre a saúde do Papa. No de quinta-feira (6), após vários dias de uma quadro estável, a Santa Sé afirmou prever que o próximo seria divulgado só nesse sábado (8). Horas depois, difundiu uma mensagem em áudio do Pontífice, em que ele, com voz cansada, agradece “de todo o coração” as preces por sua saúde.

Apesar de muitos dos boletins de saúde se resumirem a frases curtas, informando, por exemplo, que o Papa “dormiu bem” e “tomou café da manhã”, analistas especializados em temas religiosos afirmam que o nível de detalhamento de parte dos comunicados não tem precedentes.

Algumas das atualizações médicas informaram detalhes que, em outros papados, o Vaticano preferiu ocultar. A comunicação da Santa Sé foi transparente sobre o quadro de insuficiência renal inicial enfrentado por Francisco (que retrocedeu dias depois), relatou quando ele precisou de transfusões de sangue e até mesmo detalhou quando o Pontífice inalou o próprio vômito em meio a uma crise de broncoespasmos.

“Esses são detalhes muito específicos que nunca teríamos no passad”, disse David Perlich, analista sobre temas ligados ao Vaticano da rede CBC. “Fiquei surpreso com o nível de franqueza e o nível de detalhes.”

Um chavão repetido entre vaticanistas de diversos veículos de comunicação ao redor do mundo é o de que “o Papa nunca fica doente até morrer” — uma referência à falta de transparência ao longo da História.

“A Santa Sé herdou de sua forma monárquica a ideia de que a saúde do soberano é um assunto de Estado e não um assunto público”, disse Alberto Melloni, historiador da Igreja e diretor da Fundação João XXIII para Ciências Religiosas de Bolonha, em entrevista ao New York Times. “Então sempre houve esse instinto quando se trata de encobrir o estado de saúde do Papa.”

Em outro caso famoso nos arquivos da Igreja, a Santa Sé negou por meses o diagnóstico de câncer do Papa João XXIII, confirmando oficialmente apenas após a morte do Pontífice, em 1963.

A mudança no padrão de transparência atual aponta ter uma dupla dimensão. Por um lado, parece ter havido um pedido do próprio Papa Francisco para que as informações corretas fossem oferecidas — em 21 de fevereiro, dois médicos que tratam o Bispo de Roma disseram que as instruções do líder da Igreja Católica foram para “não esconder nada” e atualizar diariamente o público. Alguns analistas apontam que isso se encaixa com a comunicação mais aberta pregada pelo argentino.

Por outro lado, parece atender a pressões externas também — sobretudo porque o próprio Francisco já ficou internado por outras vezes e manteve uma comunicação discreta, incluindo durante a pandemia da Covid-19. O fator de mudança, aparentemente, é o volume de desinformação, potencializado pelas redes sociais, desde as primeiras horas de sua internação.

De informações falsas de que o Papa havia morrido a imagens geradas por Inteligência Artificial, mostrando Francisco fazendo uso de máscaras de oxigênio, a nova transparência do Vaticano parece ser uma resposta. Mas, em um mundo onde a verdade é escassa, alguns dizem que mesmo que a Santa Sé fosse ainda mais transparente, não seria suficiente para abafar rumores.

“Mesmo que eles publiquem dois boletins oficiais por dia, com informações claras, ainda haveria pessoas dizendo: ‘Não, olha, o que o Vaticano está dizendo é mentira. A verdade é que ele já morreu’”, disse Fabio Marchese Ragona, correspondente do Vaticano para o telejornal TG5 da Mediaset.

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