Revitalização no Lami: Comunidade cobra participação na discussão do projeto

“A gente quer um projeto que respeite a realidade do Lami, não um projeto que faz uma linha reta. Se fizesse um projeto que respeitasse as árvores, poderia se fazer um calçadão em um formato diferente. Não simplesmente fazer uma linha reta e se tiver árvore tirar tudo.” A observação é de Felipe Viana, integrante do Instituto Econsciencia, sobre a revitalização da orla localizada no Extremo Sul de Porto Alegre (RS).

As obras iniciaram em dezembro do ano passado. Na ocasião, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre ressaltou que o trecho de 1.350 metros, que começa nos limites da Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger e se estende até a rua Sônia Duro, receberá intervenções e melhorias. O objetivo, aponta o Executivo é qualificar a região e tornar as estruturas mais resistentes a eventos climáticos externos. A decisão para revitalização ocorreu depois dos danos causados pela enchente de maio.

O projeto está a cargo da empresa Multiplan, em uma parceria com a prefeitura. A empresa é responsável pela reconstrução dos trechos 1 (da Usina do Gasômetro até a Rótula das Cuias) e 3 (do Arroio Dilúvio ao Parque Gigante). Assim como as orlas de Ipanema e do Lami, com valor em torno de R$ 40 milhões. A Multiplan é responsável por shoppings e outros grandes empreendimentos na Capital, entre eles o Golden Lake.

O calçadão será refeito em concreto, de forma a tornar a estrutura mais resistente, afirma nota publicada no site da prefeitura: “Todo o material usado será resiliente à água e luz do sol”.

Ao longo do trajeto serão instaladas muretas com 45 centímetros acima do nível da calçada, que irão atuar como barreiras. De acordo com o secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) e coordenador do Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática, Germano Bremm, o objetivo com a colocação das muretas é reduzir o impacto das ondas nas estruturas construídas. Com isso, prossegue, aumentando a resistência do mobiliário ao desgaste causado pelo choque constante das águas.

As obras serão fiscalizadas por técnicos da Smamus e deverão durar seis meses. A revitalização foi viabilizada pelo Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática, com valor de R$ 6.466.963,12, oriundos do Termo de Conversão em Área Pública (Tcap), firmado com a empresa Multiplan pelo loteamento localizado na avenida Diário de Notícias. 

Reconhecimento

Moradores da região reconhecem que a construção da mureta pode ajudar a diminuir o impacto das ondas e também no risco de enchentes, como as que aconteceram recentemente. Contudo, enfatizam que a comunidade não foi ouvida sobre a revitalização do calçadão.

“Em momento nenhum a gente está se colocando contra a recuperação do calçadão do Lami, a gente só gostaria de ser ouvido no desenvolvimento do projeto. É um projeto que veio de cima para baixo, feito por uma construtora. Não foi feito realmente um projeto que respeitou as especificidades da região”, expõe Felipe, morador do Lami há oito anos.
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Atingido pelo desastre climático de maio, o comerciante Luciano reforça o fator de que a mureta vai melhorar a questão da enchente. “Teve duas enchentes aqui que me afetaram. Uma em setembro e outra em maio. Na de setembro, se tivesse essa mureta aqui, a água não teria chegado, porque não foi tão forte quanto essa de maio. Eu acho que vem pra agregar muito e até demorou demais.”

Contudo, assim como Felipe, Luciano critica a falta de diálogo sobre o projeto. “Eles não comunicaram a ninguém, não fizeram a comunidade participar. Eles só chegaram e largaram o projeto e disseram que tá pronto e deu. E a gente tem algumas dúvidas, como, por exemplo, o acesso dos pescadores por conta da mureta. A gente já pediu o projeto e eles apresentaram apenas umas fotos.”


Proposta de revitalização do Lami / Foto: Prefeitura de Porto Alegre / Divulgação

Preocupação ambiental

“Como todas as pessoas que sofreram as enchentes diretamente, a população do Lami também deseja que o lugar onde vivem possa ser reorganizado o quanto antes: suas casas, suas ruas, seus espaços de lazer e de trabalhar como a Orla, o calçadão, a pracinha e a área do futebol das crianças, A comunidade deseja muito a revitalização do calçadão. Ao mesmo tempo, quem mora no Lami tem consciência que vive em uma área da cidade que é uma reserva natural, um corredor ecológico e, de modo quase unânime, as pessoas sabem o valor dessa grande natureza em seu entorno: as árvores, os bugios, o rio-lago, as matas”, destaca a professora e doutora Ana Felīcia Guedes Trindade.

Ecopedagoga, educadora ambiental, permacultora da Poiesis.Madre Tierra – comunidade ecológica ‘aprendente’, Ana pontua que na linha da mureta a ser construída com aproximadamente 4 metros de profundidade e 45 centímetros de altura a partir do nível da calçada, encontram-se, pelo menos, 100 árvores, que estão sobre o calçadão.

“Ali, residem seres vivos, do reino vegetal, de 10 a 50 anos, incluindo corticeiras que são imunes ao corte protegidas por lei ambiental. Temos uma fauna diversa, para exemplificar, as famílias de bugios, que se alimentam também dessas árvores, pela proximidade que fica da reserva biológica. É nessa ‘beira das águas’ que as tartarugas de água doce têm seu habitat, os lagartos, etc. Uma obra vai causar destruição desse habitat, criará impactos ambientais, sim”, afirma.


“Ali, residem seres vivos, do reino vegetal, de 10 a 50 anos, incluindo corticeiras que são imunes ao corte protegidas por lei ambiental” / Foto: Arquivo Pessoal

A professora pontua que através de diálogos iniciais, mais máquinas e operários chegaram ao local. “Seguiremos acompanhando e solicitando o que nos cabe de direito, como a apresentação pública detalhada do projeto pela prefeitura e empresa para a população do Lami, nos próximos dias.”

Conforme pontua o professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Paulo Brack, a raiz do problema observado no Lami é a mesma de Ipanema. “Em Ipanema, a situação que constatamos, neste início de fevereiro, é de extraordinária destruição da praia e da paisagem, com danos a dezenas de árvores, a maioria originária da mata ciliar anterior à urbanização. Muitas árvores locais são nativas, raras e remanescentes de matas ciliares e de restinga arenosa, anteriores à urbanização de Ipanema.”

Parte desta vegetação do rio-lago Guaíba é também protegida pela Lei da Mata Atlântica, incluídas como Formações Pioneiras, destaca Brack. De acordo com o professor, não há informação disponibilizada à população local e de Porto Alegre quanto a estes projetos. De acordo com ele, foi solicitado esclarecimentos no Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam).


Calçadão Ipanema / Foto: Arquivo Pessoal

“As informações, limitadas a Ipanema, foram superficiais e não contavam com a necessidade de proteção às Áreas de Preservação Permanente (APP), a existência de plantas ameaçadas, raras e imunes ao corte nos locais, além da execução deplorável associada a estes projetos, causando múltiplos danos à vegetação das praias (cortes de raízes e galhos, entulhos sobre vegetais, supressão total de árvores, etc.). No caso das APPs de matas ciliares ali existentes, é importante destacar que são protegidas pela Lei 12651/2012 (Código da Vegetação Nativa).”

Em nota publicada no site da prefeitura, o Executivo informa que a vegetação também será qualificada para aumentar a resistência ao impacto das águas. Será feito o plantio de novas espécies nativas, provenientes do Viveiro Municipal, além de grama e herbáceas. Ao longo do calçadão, serão instalados recantos infantis com brinquedos e banheiros femininos, masculinos e com acessibilidade, em contêineres.


Calçadão Lami / Foto: Alex Rocha/PMPA

Ausência de informações

Brack reforça que não há informação nenhuma da Smamus quanto a aspectos de necessidade de proteção. “Inclusive, há mais de um ano, solicitamos, no Comam, por várias vezes, que a Secretaria divulgue à população, inclusive em programas de Educação Ambiental, a lista da flora ameaçada com ocorrência em Porto Alegre, e que incorpora 80 espécies, quase todas desconhecidas da população.”

Na demora de respostas, por parte do Executivo, o professor informa que está recorrendo ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul a fim de que as obras sejam interrompidas. “Tanto pela forma gravemente danosa, como vêm sendo executadas, como pela concepção em trazer profunda alteração da paisagem. Reivindicamos a obrigatoriedade de se realizar um licenciamento ambiental destes projetos, já que atingem APP. Espécies ameaçadas e raras de vegetação, impactam a fauna, agregando-se a presença de vegetação de Mata Atlântica, todos estes aspectos protegidos por lei, mas ignorados flagrantemente nos projetos executados.”

Além disso, acrescenta Brack, não há nenhuma comprovação de que tais obras venham a trazer a contenção das cheias, como havíamos assinalado. Ele aponta a necessidade de um estudo mais amplo, com consulta ao Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, que avalie a eventual eficiência na implantação de equipamentos de contenção de enchentes na Orla do Guaíba. 

“Sem falar que, em outra parte da cidade, a Smamus está permitindo gigantescos aterros de banhados na várzea do rio Gravataí, no limite norte do município, o que diminui o efeito esponja das áreas úmidas e agrava evidentemente a subida rápida dos rios após essas chuvas sem precedentes.”

Talvez, o mais racional e mais barato para o município, avalia o professor em relação aos moradores afetados pelas cheias em Ipanema e Lami, seria a prefeitura trazer benefícios econômicos para a recuperação das construções junto às praias e zonas também atingidas pelas enchentes.


Obras tiveram início em dezembro de 2024 / Foto: Arquivo Pessoal

Alternativa 

Urbanista e integrante do coletivo TransLAB.URB, Leonardo Brawl pontua que experiências recentes de obras “nesse tipo de arranjo com o setor privado não foram muito boas”, citando, como exemplo, a execução das ciclovias da capital gaúcha. “Dentre tantos problemas, um dos principais é deixar a solução técnica ser resolvida à portas fechadas, dentro das construtoras, sem processos participativos. E sem dar conta da necessidade de uma visão transdisciplinar. Certamente a orientação será mais de caráter econômico do que de interesse social.” O coletivo trabalha com assessorias técnicas junto aos moradores da Ilha do Pavão e dos pescadores artesanais do Lami.

De acordo com Brawl, já há relatos do uso de muito material que reduz a permeabilidade do solo, e que também retém calor. “Da mesma maneira que muitos moradores, especialmente no Lami, estão temendo um grande número de supressão de árvores por parte da escolha de materialidade e desenho de calçadão.”

Indagado sobre alternativas ao projeto de revitalização da prefeitura, o urbanista opina que há diretrizes e orientações projetuais muito mais pertinentes do que calçamentos tradicionais. Ele cita três exemplos: as soluções do repertório das chamadas “soluções comunitárias baseadas na natureza”, com o uso de superfícies permeáveis, casadas com manejo e recuperação das matas ciliares, típicas desse ecossistema. Possibilidades de desenhos urbanos que não são contínuas, compatibilizando trechos com forte intervenção de obras, com trechos ao estilo “parque naturalizado”. E terceiro, trechos com bolsões de paisagem natural (recuperada).

“Inclusive fazendo essas obras como verdadeiros processos pedagógicos para a população local avançar nas discussões sobre outras possibilidades de relações com a dimensão da Natureza como forma de construção de futuros socialmente justos e ambientalmente viáveis”, defende Brawl.


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