‘E desde então, sou porque tu és…’

O ser humano é formado por um mundo de complexidades, o que o torna único. Não significa que esteja alheio e ocluso ao meio em que vive e se desenvolve. Segundo o filósofo espanhol José Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância”, ou seja, as circunstâncias representam variáveis constituintes da pessoa. À luz dessas breves considerações sobre a natureza humana não é exagero pensar no desafio que representa qualquer tentativa de abordagem de fatores sentimentais humanos que ofereça uma perspectiva de reconhecimento em termos de coletividade.

Nesse cenário, tornam-se extremamente interessante os exemplos que temos de escritores e poetas que ousaram a escrever sobre a subjetividade humana compreendida aqui como todo o mosaico de sentimentos que se manifestam em cada ser humano. Dentre esses especialistas das emoções e das letras temos um chileno que merece destaque: o sempre presente Pablo Neruda. Este poeta derramou letras ao papel ao longo de sua vida sobre os mais variados temas como a as desigualdades sociais por conta de sua sede insaciável de justiça aos oprimidos, bem como demonstrou seu fascínio pela natureza. Nesse breve texto o foco é sobre a sua capacidade de abordar os sentimentos relacionados ao amor de forma tão profunda capaz de gerar em seus leitores um caldeirão de sensibilidades. Apenas para nosso breve deleite reproduzo um fragmento do soneto de amor LXIX cuja frase inicial inaugura este breve texto:

“E desde então, sou porque tu és,

E desde então és, sou e somos,

E por amor, Serei, Serás e Seremos”

Ler os poemas de Pablo representa uma viagem dentro de si mesmo na qual o viajante depara-se a todo momento com uma espécie de espelho de seus sentimentos que possibilita uma identificação do que muitas vezes parece indescritível tamanha a potência de emoções que inundam nossos corações. É falar sobre a nossa intimidade mais resguardada pelas cicatrizes da vida e do tempo. É acreditar que o amor verdadeiro é capaz de torna-se a propulsão de mudanças capaz de impulsionar até revoluções contra as opressões, como diria Che Guevara.

Os textos de Neruda inquietam e ao mesmo tempo acalmam o coração na medida em que nos oferecem uma relação direta, sem filtros e sem pudor do que temos de mais belo e infame dentro de nós, do que temos de mais triste e alegre, do que temos de maiores dúvidas e certezas, do que temos de maiores bondades e maldades em nossos pensamentos. A correlação entre esses aspectos constitui o que somos e o que sentimos.

Esses poemas com tamanha profundidade desafiam o leitor a lidar com suas desventuras e anseios, com suas inquietudes e do que foge à compreensão. É viajar com uma venda aos olhos que se rompe ao menor movimento das pálpebras. Essa jornada pode ser a mais difícil, mas também a mais libertadora, uma vez que externamos em palavras alheias o que temos trancado a sete chaves.

Se temos as circunstâncias como parte dos vetores que nos constituem, como já mencionado, a tradução em palavras do cenário intangível de nossos sentimentos nos ajuda e fortalece a seguir em frente. Neruda constituiu-se de um verdadeiro cirurgião das palavras que entre suturas e procedimentos enigmáticos de entendimento de nossos sentimentos trouxe para o papel o que temos de mais íntimo.

Seguir lendo seus poemas é desbravar uma intensa e marcante jornada sem retorno, uma vez que dificilmente finalizaremos essa trajetória da mesma forma que a iniciamos. Nos desafia a seguir em busca de novas compreensões do que sentimos, como um caleidoscópio das emoções. É um caminho que muitos preferem não trilhar, pois olhar para dentro si com tamanho ímpeto pode ser um processo profundamente doloroso e identificador de nossas fragilidades mais sensíveis, mas para quem ousa atravessar o vale das incertezas é provável que encontre o bem-querer e a paz como o crepúsculo de novos tempos. Dias nos quais a perseverança de seguir navegando pelos mares da vida é alimentada pela resiliência e intensidade do sentimento que nos completa como seres humanos: o amor.

* Fabiano Negreiros é militante comunitário.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

 

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